sábado, 19 de outubro de 2013

A obscena senhora (trecho)



Venho, Senhora D, a pedido da vila, a confissão, a comunhão, não quer? meu nome é
de onde vem o Mal, senhor?
misterium iniquitatis, Senhora D, há milênios lutamos com a resposta, coexistem bons e maus, o corpo do Mal é separado do divino.
quem criou o corpo do Mal?
Senhora D, o Mal não foi criado, fez-se, arde como ferro em brasa, e quando quer esfria, é gelo, neve, tem muitas máscaras, por sinal, não gostaria de se desfazer das suas, e trazer a paz de volta à vizinhança?
e como é o corpo do Mal?
de escuridão e ouro
só tenho coisas baças, peixes pardos, frutas secas, sacos, ferrugem, esterco e meu próprio barro: a carne.
por que fecha sempre as janelas?
e por que devo abri-las?
e por que as abre derepente e assusta as gentes e grita?
o corpo é quem grita esses vazios tristes
por que não alimenta o corpo com benquerença, aceitando o agrado dos outros?
porque o corpo está morto
e a alma?
a alma é hóspede da Terra, procura e te olha os olhos agora, e te vê cheio de perguntas
sou um homem como outro qualquer, Senhora D
então rua rua, fora, despacha-te homem como outro qualquer


Hilda Hilst, A obscena senhora D.