segunda-feira, 15 de abril de 2013

O Advogado do Diabo


Esse Giacomo Nerone fora assassinado por comunistas em circunstâncias que bem poderiam ser chamadas de verdadeiro martírio. Desde sua morte, vinham-lhe sendo prestados, nas vilas e nos campos adjacentes, espontâneos tributos de veneração, atribuindo-se à sua influência diversas curas de natureza milagrosa. Investigações preliminares confirmaram sua reputação de santidade, bem como a natureza aparentemente milagrosa de tais curas, e o bispo mostrou-se disposto a aceitar a petição e submeter o caso à investigação jurídica. Antes de fazê-lo, porém, desejava conhecer a opinião de Sua Eminência, como prefeito da Congregação dos Ritos, bem como contar com sua assistência para que fossem designados, diretamente de Roma, dois cultos e virtuosos sacerdotes — um, como postulador da causa, para iniciar a investigação e levá-la avante e, outro, como promotor da fé, ou advogado do Diabo, para submeter as provas e as testemunhas ao severo escrutínio, segundo as cláusulas pertinentes do direito canônico.
Havia muito, muito mais, mas essa era a essência da coisa. O bispo talvez tivesse mesmo um santo em seu território — e, o que é mais, um santo conveniente, martirizado pelos comunistas. A única maneira pela qual poderia provar essa santidade era mediante uma investigação judicial, primeiro em sua própria diocese e, depois, em Roma, debaixo da autoridade da Congregação dos Ritos. A primeira investigação, porém, seria feita em sua própria sede episcopal e sob sua própria autoridade, por meio de autoridade por ele mesmo designada.
Os bispos locais eram, em geral, zelosos de sua autonomia. Por que razão, pois, aquele apelo deferente a Roma?
O Cardeal Eugênio Marotta caminhava pelos relvados bem-cuidados dos jardins de sua villa, a meditar sobre tal proposição.
Gemelli dei Monti situava-se bem no coração da Itália meridional, onde os cultos se extinguem tão rapidamente quanto proliferam, onde a fé se acha sobrecarregada de espessa patina de superstição, onde os camponeses fazem, com a mesma mão, o sinal-da-cruz e o gesto contra o mau-olhado, onde a imagem do Bambino é dependurada sobre a cama e os cornos pagãos pregados na porta do celeiro. O bispo era um homem astuto que queria um santo para o bem de sua própria diocese, mas que declinava colocar sua própria reputação em jogo juntamente com a do servo do Senhor.
Se a investigação corresse bem, teria não apenas um beato, mas uma vara com que castigar os comunistas. Se corresse mal, os sábios e piedosos homens de Roma bem poderiam arcar com uma parte da culpa. Sua Eminência esboçou um sorriso, diante da sutileza daquilo. Arranhe-se um homem do sul, e encontrar-se-á uma raposa que fareja armadilhas a uma milha de distância e que se desvia matreiramente delas rumo ao galinheiro.
Mas estava em jogo mais do que a reputação de um bispo provincial.
Havia também política envolvida no caso, e faltavam apenas doze meses para as eleições italianas. A opinião pública era sensível à influência do Vaticano nos assuntos civis. Os anticlericais acolheriam de bom grado uma oportunidade para desacreditar a Igreja, e já dispunham de armas suficientes para que se lhes pusesse outra nas mãos.
Havia, no entanto, questões mais profundas, matérias que diziam menos respeito ao tempo que à eternidade. Dizer que um homem era santo era declará-lo servo heroico de Deus, apresentá-lo como exemplo e intercessor a favor dos fiéis. Aceitar seus milagres era admitir, além de qualquer dúvida, o poder divino a agir através de sua pessoa, suspendendo ou cancelando as leis da natureza. Um erro em tal assunto era coisa inconcebível. Toda a maciça maquinaria da Congregação dos Ritos se destinava a impedir que isso ocorresse. Mas uma ação prematura, uma investigação malfeita, poderia causar grave escândalo e debilitar a fé de milhões de indivíduos numa Igreja infalível que reivindicava para si a orientação direta do Espírito Santo.
Sua Eminência sentiu um arrepio ante a friagem que descia sobre Parioli com as primeiras sombras da noite. Era um homem enrijecido pelo poder e cético quanto à devoção, mas também carregava sobre os ombros o fardo da crença e, em seu coração, o medo do demônio do meio-dia.
Podia dar-se menos do que os outros ao luxo de errar. Pois muito mais dependia dele. O castigo do fracasso seria tanto mais rigoroso. Apesar da pompa de seu título e da dignidade secular que o acompanhava, sua missão primordial era de ordem espiritual. Dizia respeito a almas — à sua salvação ou condenação.
A maldição da mó podia recair igualmente tanto sobre um cardeal que errava como sobre um cura sem fé. Assim, caminhava e refletia seriamente, enquanto a leve harmonia dos sinos subia da cidade e os grilos, no jardim, começavam o seu coro estridente.
Concederia ao bispo de Valenta o seu pequeno triunfo. Encontraria os homens para ele: um postulador que elaborasse o caso e o apresentasse, e um advogado do Diabo para que o destruísse, se pudesse. Dos dois, o advogado do Diabo era o mais importante. Seu título oficial descrevia-o com exatidão: promotor da fé. O homem que mantinha a fé pura, mesmo à custa de vidas destroçadas e de corações partidos. Devia ser um homem culto, meticuloso, desapaixonado. Devia ser frio em seu julgamento, implacável em sua condenação. Podia deixar de ter caridade ou piedade, mas não podia faltar-lhe precisão. Tais homens eram raros, e aqueles de que dispunha já estavam ocupados em outras causas.
Foi então que se lembrou de Blaise Meredith, o homem magro, sóbrio, que já tinha sobre si o cinzento da morte. Ele possuía tais qualidades. Era inglês, o que afastaria o perigo das embrulhadas políticas. Mas se tinha desejo ou lhe restava tempo para aquela tarefa era um outro assunto. Se o veredito médico fosse desfavorável, talvez não se sentisse disposto a aceitar tão pesada missão.
Contudo, aquilo era o começo de uma resposta. Sua Eminência não se sentia de todo insatisfeito. Deu mais uma volta, lentamente, pelo jardim já escuro, depois recolheu-se à villa, a fim de dizer as vésperas em companhia de seus domésticos.

Morris West, O advogado do diabo