- Aguenta eu te dizer que Deus não é bonito. E isto porque Ele não é nem um resultado nem uma conclusão, e tudo o que a gente acha bonito é às vezes apenas porque já está concluído. Mas o que hoje é feio será daqui a séculos visto como beleza, porque terá completado um de seus movimentos.
Eu não quero mais o movimento completado que na verdade nunca se completa, e nós é que por desejo completamos; não quero mais usufruir da facilidade de gostar de uma coisa só porque, estando ela aparentemente completada, não me assusta mais, e então é falsamente minha - eu, devoradora que era das belezas.
Não quero a beleza, quero a identidade. A beleza seria um acréscimo, e agora vou ter que dispensá-la. O mundo não tem intenção de beleza, e isto antes me teria chocado: no mundo não existe nenhum plano estético, nem mesmo o plano estético da bondade, e isto antes me chocaria. A coisa é muito mais que isto. O Deus é maior que a bondade com a sua beleza.
Ah, despedir-se disso tudo significa tal grande desilusão. Mas é na desilusão que se cumpre a promessa, através da desilusão, através da dor é que se cumpre a promessa, e é por isso que antes se precisa passar pelo inferno: até que se vê que há um modo muito mais profundo de amar, e esse modo prescinde do acréscimo da beleza. Deus é o que existe, e todos os contraditórios são dentro do Deus, e por isso não O contradizem.
Ah, em mim toda está doendo largar o que me era o mundo. Largar é uma atitude tão áspera e agressiva que a pessoa que abrisse a boca para falar em largar deveria ser presa e mantida incomunicável - eu mesma prefiro me considerar temporariamente fora de mim, a ter a coragem de achar que tudo isso é uma verdade.
- Dá-me a tua mão, não me abandones, juro que também eu não queria: eu também vivia bem, eu era uma mulher de quem se poderia dizer “vida e amores de G.H.”. Não posso pôr em palavras qual era o sistema, mas eu vivia num sistema. Era como se eu me organizasse dentro do fato de ter dor de estômago porque, se eu não a tivesse mais, também perderia a maravilhosa esperança de me livrar um dia da dor de estômago: minha vida antiga me era necessária porque era exatamente o seu mal que me fazia usufruir da imaginação de uma esperança que, sem essa vida que eu levava, eu não conheceria.
E agora estou arriscando toda uma esperança acomodada, em prol de uma realidade tão maior que cubro os olhos com o braço por não poder encarar de frente uma esperança que se cumpre tão já - e mesmo antes de eu morrer! Tão antes de eu morrer. Também eu me queimo nesta descoberta: a de que existe uma moral em que a beleza é de uma grande superficialidade medrosa. Agora aquilo que me apela e me chama é o neutro. Não tenho palavras para exprimir, e falo então em neutro. Tenho apenas esse êxtase, que também não é mais o que chamávamos de êxtase, pois não é culminância. Mas esse êxtase sem culminância exprime o neutro de que falo.
Ah, falar comigo e contigo está sendo mudo. Falar com o Deus é o que de mais mudo existe. Falar com as coisas, é mudo. Eu sei que isso te soa triste, e a mim também, pois ainda estou viciada pelo condimento da palavra. E é por isso que a mudez está me doendo como uma destituição.
Mas eu sei que devo me destituir: o contato com a coisa tem que ser um murmúrio, e para falar com o Deus devo juntar sílabas desconexas. Minha carência vinha de que eu perdera o lado inumano - fui expulsa do paraíso quando me tornei humana. E a verdadeira prece é o mudo oratório inumano.
Não, não tenho que subir através da prece: tenho que, ingurgitada, tornar-me um nada vibrante, O que falo com Deus tem que não fazer sentido! Se fizer sentido é porque erro.
Ah, não me descompreendas: não estou tirando nada de ti. Estou é exigindo de ti. Sei que parece que estou tirando a tua e a minha humanidade. Mas é o oposto: estou querendo é viver daquilo inicial e primordial que exatamente fez com que certas coisas chegassem ao ponto de aspirar a serem humanas. Estou querendo que eu viva da parte humana mais difícil: que eu viva do germe do amor neutro, pois foi dessa fonte que começou a nascer aquilo que depois foi se distorcendo em sentimentações a tal ponto que o núcleo ficou sufocado pelo acréscimo de riqueza e esmagado em nós mesmos pela pata humana. É um amor muito maior que estou exigindo de mim - é uma vida tão maior que não tem sequer beleza.
Estou tendo essa coragem dura que me dói como a carne que se transforma em parto.
Mas não. Eu ainda não contei tudo.
Não que só falte o que vou agora contar. Falta muito mais a esse meu relato a mim mesma: falta, por exemplo, pai e mãe; ainda não tive a coragem de honrá-los; faltam tantas humilhações por que passei, e que omito porque só são humilhados os que não são humildes, e em vez de humilhação então eu deveria falar na minha falta de humildade; e a humildade é muito mais que um sentimento, é a realidade vista pelo mínimo bom-senso.
Falta muito a contar. Mas há alguma coisa que será indispensável dizer.
(De uma coisa eu sei: se chegar ao fim deste relato, irei, não amanhã, mas hoje mesmo, comer e dançar no “Top Bambino”, estou precisando danadamente me divertir e me divergir. Usarei, sim, o vestido azul novo, que me emagrece um pouco e me dá cores, telefonarei para Carlos, Josefina, Antônio, não me lembro bem em qual dos dois percebi que me queria ou ambos me queriam, comerei crevettes ao não importa o quê”, e sei porque comerei crevettes, hoje de noite, hoje de noite vai ser a minha vida diária retomada, a de minha alegria comum, precisarei para o resto dos meus dias de minha leve vulgaridade doce e bem-humorada, preciso esquecer, como todo o mundo.) É que não contei tudo.
Não contei que, ali sentada e imóvel, eu ainda não parara de olhar com grande nojo, sim, ainda com nojo, a massa branca amarelecida por cima do pardacento da barata. E eu sabia que enquanto eu tivesse nojo, o mundo me escaparia e eu me escaparia. Eu sabia que o erro básico de viver era ter nojo de uma barata. Ter nojo de beijar o leproso era eu errando a primeira vida em mim - pois ter nojo me contradiz, contradiz em mim a minha matéria.
Então aquilo que, por piedade por mim, eu não queria pensar, então eu pensei. Não pude me impedir mais, e pensei o que na verdade já estava pensando.
Agora, por piedade pela mão anônima que prendo à minha, por piedade pelo que essa mão não vai compreender, eu não estou querendo levá-la comigo para o horror aonde ontem fui sozinha.
Pois o que de repente eu soube é que chegara o momento não só de ter entendido que eu não devia mais transcender, mas chegara o instante de realmente não transcender mais. E de ter já o que anteriormente eu pensava que devia ser para amanhã. Estou tentando te poupar, mas não posso.
É que a redenção devia ser na própria coisa. E a redenção na própria coisa seria eu botar na boca a massa branca da barata.
Só à ideia, fechei os olhos com a força de quem tranca os dentes, e tanto apertei os dentes que mais um pouco e eles se quebrariam dentro da boca. Minhas entranhas diziam não, minha massa rejeitava a da barata.
Eu parara de suar, de novo eu toda havia secado. Procurei raciocinar com o meu nojo. Por que teria eu nojo da massa que saía da barata? não bebera eu do branco leite que é líquida massa materna? e ao beber a coisa de que era feita a minha mãe, não havia eu chamado, sem nome, de amor? Mas o raciocínio não me levava a parte alguma, senão a continuar com os dentes crispados como se fossem de carne que se arrepiava.
Eu não podia.
Só haveria um modo de poder: se eu desse a mim mesma um comando hipnótico, e então como que eu me adormeceria e agiria sonambulicamente - e quando abrisse os olhos do sono, já teria “feito”, e seria como um pesadelo do qual se acorda livre porque foi dormindo que se viveu o pior.
Mas eu sabia que não era assim que eu deveria fazer. Sabia que teria que comer a massa da barata, mas eu toda comer, e também o meu próprio medo comê-la. Só assim teria o que de repente me pareceu que seria o antipecado: comer a massa da barata é o antipecado, pecado seria a minha pureza fácil.
O antipecado. Mas a que preço.
Ao preço de atravessar uma sensação de morte.
Clarice Lispector, A paixão segundo G.H.