sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Um lençol de amores

 No rosto de Dulcineusa se apagava a ruga. Essa mesma ruga que sublinha agora a sua ansiedade.
- Me diga, meu neto: ele dizia que me amava? - Quer dizer, falava de modo indireto. - Eu preciso que me conte isso, meu neto. Lhe explico: este enviuvar me parece quase um casamento.
- Um casamento?
- É o que eu sinto, sem Mariano. A alegria de só agora casar com ele.
- Isso não é pecado, Avó. Até é bonito...
- Me apetece, pela primeira vez, subir a bainha, baixar o decote, usar pó-de-arroz.
   O modo como os dois se encontraram era história na família. Mariano repetia vezes sem conta esse episódio. Mas com variações tantas que nunca se podia empenhar crédito.
   - Fosse eu assim, velho, quando lhe encontrei e eu lhe teria amado melhor. Não tanto, mas melhor, muito melhor.
Dulcineusa fingia um desdenho:
- Há tanta vizinha e logo você foi notar em mim.
   Mariano já não seria muito moço quando a conheceu. A Avó era operária na fábrica de caju, descascadora dos ácidos frutos. Nessa altura, as mãos dela ainda não tinham sido comidas pelas corrosivas seivas do caju. Dito Mariano possuía um gato, treinado para os indevidos fins. O bichano era lançado em plenas vielas noturnas e se infiltrava pelos quintais até detectar uma moça solteira, disposta e disponível. Durante consecutivas noites, o gato insistiu em se imiscuir na casa de Dulcineusa.
Não havia dúvida: era ela a escolhida. Mariano começou a aparecer no pátio de Dulcineusa com desculpa de comprar castanha de caju. Ela ainda era magrita, bem cabida nos panos, lenço adornando a cabeça, brinco de missangas na orelha.
   Dulcineusa sorria, matreiramente, quando o via surgir. Mas ele não se afigurava em fraqueza. Ombros empinados, pescoço hasteado. A frase lustrada, tão bem escolhida quanto o sapato. A Avó, mesmo assim, resistia:
- Não sou namorável, Mariano.
- E se eu lhe pedir um beijo?
- Vou demorar a vida inteira para lhe dar esse beijo.
- Eu espero, então.
   Vantagem de pobre é saber esperar. Esperar sem dor. Porque é espera sem esperança. Mariano sofria sem pressa. Isso, ele me ensinara: o segredo é demorar o sofrimento, cozinhá-lo em lentíssimo fogo, até que ele se espalhe, diluto, no infinito do tempo. Todos confirmavam: Mariano era um homem garganteador mas generoso e de reto princípio.
   - Sou tão bom que até perdi o carácter - admitia ele. - A bondade me destemperamentou.
   Dulcineusa não se conformava, porém, com essa generosidade que ele dirigia para todos menos para ela. Por que motivo nunca lhe dedicara flores, não lhe trouxera panos, nem lhe dirigira carinhos?
   - Não se dá nome às estrelas - ripostava Mariano.
   O Avô defendia-se na tradição. Homem que se queira macho não pode dar nem receber carinhos em público. Namoros são assuntos privados. Dulcineusa acabou resignando.
Pior para ela era Mariano recusar desfazer-se do tal gato. A mulher bem queria dar despacho ao mal-afamado bichano. Por que razão ele mantinha precisão no serviço do detector de moças, até hoje a Avó cismava.
   Um suspiro lhe remata a angústia. As memórias lhe fazem bem. A Avó afaga uma mão com a outra como se entendesse retificar o seu destino, desenhado em seus entortados dedos.
- Agora, meu neto, me chegue aquele álbum.      
Aponta um velho álbum de fotografias pousado na poeira do armário. Era ali que, às escondidas, ela vinha tirar vingança do tempo. Naquele livro a Avó visitava lembranças, doces revivências.
   Mas quando o álbum se abre em seu colo eu reparo, espantado, que não há fotografia nenhuma. As páginas de desbotada cartolina estão vazias. Ainda se notam as marcas onde, antes, estiveram coladas fotos.
- Vá. Sente aqui que eu lhe mostro.
Finjo que acompanho, cúmplice da mentira.
- Está ver aqui seu pai, tão novo, tão clarinho até parece mulato?
   E vai repassando as folhas vazias, com aqueles seus dedos sem aptidão, a voz num fio como se não quisesse despertar os fotografados.
   - Aqui, veja bem, aqui está sua mãe. E olhe nesta, você, tão pequeninho! Vê como está bonita consigo no colo?
   Me comovo, tal é a convicção que deitava em suas visões, a ponto de os meus dedos serem chamados a tocar o velho álbum. Mas Dulcineusa corrige-me.
   - Não passe a mão pelas fotos que se estragam. Elas são o contrário de nós: apagam-se quando recebem carícias.
   Dulcineusa queixa-se que ela nunca aparece em nenhuma foto. Sem remorso, empurro mais longe a ilusão. Afinal, a fotografia é sempre uma mentira. Tudo na vida está acontecendo por repetida vez.
- Engano seu. Veja esta foto, aqui está a Avó.
- Onde? Aqui no meio desta gente toda?
- Sim, Avó. É a senhora aqui de vestido branco.
- Era uma festa? Parece uma festa.
- Era a festa de aniversário da Avó!
Vou ganhando coragem, quase acreditando naquela falsidade.
 - Não me lembro que me tivessem feito uma festa.. .
  - E aqui, veja aqui, é o Avô lhe entregando uma prenda.
  - Mostre! Que prenda é essa, afinal?
  - É um anel, Avó. Veja bem, como brilha esse anel!
   Dulcineusa fixa a inexistente foto de ângulos diversos. Depois, contempla longamente as mãos como se as comparasse com a imagem ou nelas se lembrasse de um outro tempo.
- Pronto, agora vá. Me deixe aqui, sozinha.
Vou saindo, com respeitosos vagares. Já no limiar da porta, a Avó me chama. Em seu rosto, adivinho um sorriso:
- Obrigada, meu neto
- Obrigada por quê?
- Você mente com tanta bondade que até Deus lhe ajuda a pecar.



Mia Couto
Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra