terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Marguerite Duras, O amante

O homem elegante desceu da limusine, ele fuma um cigarro inglês. Olha a jovem com chapéu masculino e sapatos durados. Aproxima-se devagar. Visivelmente intimidado. De início não sorri. De início oferece um cigarro a ela. A mão treme. Há essa diferença de raça, ele não é branco, ele deve superá-la, por isso treme. Ela lhe diz que não fuma, não, obrigada. Não diz mais  nada, não diz me deixe em paz. Ele sente menos medo. E diz que parece estar sonhando. Ela não responde. Não vale a pena responder, o que responderia? Ela espera. Ele pergunta: mas de onde você é? Ela diz que é filha da diretora da escola feminina de Sadec. Ele pensa um pouco e depois diz que ouviu falar dessa senhora, a mãe, de sua falta de sorte com aquela concessão que teria comprado no Camboja, não é isso? Sim, é isso.

Ele repete que á absolutamente extraordinário encontrá-la nessa balsa. De manhã tão cedo, uma jovem linda como ela, você não imagina, é muito inesperado, uma jovem branca num ônibus nativo.
Diz que o chapéu lhe cai bem, muito bem mesmo, que é... original... um chapéu de homem, por que não? Ela é tão bonita, pode se permitir qualquer coisa.

Ela olha para ele. Pergunta quem ele é. Ele diz que está voltando de Paris, onde fez seus estudos, que também mora em Sadec, justamente junto ao rio, o casarão com os grandes terraços e as balaustradas de cerâmica azul. Ela pergunta o que ele é. Ele diz que é chinês, que sua família vem do norte da China, de Fu-Chuen. Você me permitiria conduzi-la à sua casa em Saigon? Ela concorda. Ele diz ao motorista para pegar as bagagens da jovem no ônibus e colocá-las no carro preto.

Chinês. Ele pertence a essa minoria financeira de origem chinesa que possui todos os imóveis populares da colônia. É aquele que atravessava o Mekong naquele dia em direção a Saigon.

Ela entra no carro preto. A porta se fecha. Uma leve aflição vem de repente, um cansaço, a luz sobre o rio que se embaça, mas levemente. Um ensurdecimento muito tênue também, uma névoa, por tudo.

Nunca mais farei a viagem no ônibus dos nativos. A partir de agora, terei uma limusine para ir ao liceu e para me levar de volta ao pensionato. Jantarei nos lugares mais elegantes da cidade. E estarei ali sempre lamentando tudo o que faço, tudo o que deixo, tudo o que pego, bom ou ruim, o ônibus, o motorista do ônibus, com quem eu dava risada, as velhas mascando bétel nos assentos traseiros, as crianças sobre os bagageiros, a família de Sadec, o horror da família de Sadec, seu silêncio genial.

Ele falava. Dizia que sentia falta de Paris, das adoráveis parisienses, das farras, das orgias, ah, de lá, de lá, da Coupole, da Rotonde, já eu prefiro a Rotonde, das casas noturnas, dessa vida “fabulosa” que ele tinha levado durante doisa nos. Ela escutava, atenta às informações de seu discurso que remetiam à riqueza, que pudessem dar uma indicação da quantidade de milhões. Ele continuava a contar. A mãe havia morrido, era filho único. Só lhe restava o pai, o dono do dinheiro. Mas, sabe como é, ele está preso ao cachimbo de ópio na frente do rio faz dez anos, administra a fortuna de sua cama de campanha. Ela diz que entende.

O pai não permitirá o casamento do filho com a pequena prostituta branca do posto de Sadec.

A imagem começa bem antes que ele aborde a menina branca perto da amurada, no momento em que desce da limusine preta, quando começa a se aproximar dela, e ela sabe, ela sabe, que ele está com medo.

Desde o primeiro momento ela sabe alguma coisa assim, quer dizer, que ele está em suas mãos. E que, portanto, outros também, além dele, poderiam ficar em suas mãos caso surgisse a ocasião. Ela também sabe uma outra coisa, que agora certamente chegou o momento em que não pode mais escapar a certas obrigações para consigo mesma. E ela também sabe, nesse dia, que a mãe não pode saber de nada daquilo, nem os irmãos. Desde que entrou no carro preto, ela soube, está afastada dessa família pela primeira vez e para sempre. Doravante eles não devem mais saber o que acontecerá com ela. Não importa que a peguem, que a levem, que a maltratem, que a corrompam, eles não devem mais saber. Nem a mãe, nem os irmãos. Doravante será este o destino deles. É hora de chorar na limusine preta.

A menina agora terá de enfrentar aquele homem, o primeiro, aquele que se apresentou na balsa.

Chegou muito rápido esse dia, uma quinta-feira. Ele veio todos dias buscá-la no liceu para levá-la ao pensionato. E depois uma vez, uma quinta-feira à tarde, ele veio ao pensionato. E a levou no carro preto.

É Cholen. Fica do outro lado dos bulevares que ligam o bairro chinês ao centro de Saigon, essas grandes ruas de tipo americano recortadas pelos bondes, pelos riquixás, pelos ônibus. É o começo da tarde. Ela escapou ao passeio obrigatório das jovens do pensionato.

É um cômodo no sul da cidade. Moderno, parece mobiliado às pressas, com móveis que se pretendem modern style. Ele diz: não escolhi os móveis. O estúdio está escuro, ela não pede que abra as persianas. Não tem um sentimento muito definido, não sente ódio nem repugnância, então sem dúvida ali já existe desejo. Ela desconhece o desejo. Concordou em vir quando ele a convidou na tarde anterior. Está onde deve estar, deslocada. Sente um leve medo. De fato, parece que isso deve corresponder não só ao que ela espera, mas ao que deveria acontecer exatamente no seu caso. Ela está muito atenta ao exterior das coisas, à luz, ao vozerio da cidade em que está imerso o quarto. Ele, por sua vez, treme. Olha-a de início como que esperando que ela fale, mas ela não fala. Então ele também não se mexe, não a despe, diz que a ama feito loco, diz baixinho. Depois fica quieto. Ela não responde. Poderia responder que não o ama. Não diz nada. De repente ela sabe, ali, naquele instante, ela sabe que ele não a conhece, que nunca a conhecerá, que não tem como conhecer tanta perversidade. E fazer tantos e tantos rodeios para alcançá-la, ele jamais conseguirá. Cabe a ela saber. Ela sabe. A partir da ignorância dele, ela sabe de repente: ele lhe agradava já na balsa. Ele lhe agrada, a coisa dependia somente dela.

Ela lhe diz: preferiria que você não me amasse. Mesmo que você me ame, gostaria que fizesse como costuma fazer com as mulheres. Ele a olha espantado, e pergunta: é o que você quer? Ela diz que sim. Foi ali naquele quarto que ele começou a sofrer pela primeira vez, não mente mais sobre esse ponto. Ele lhe diz que já sabe que ela nunca o amará. Ela o deixa falar. Primeiro ela diz que não sabe. Depois o deixa falar.

Ele diz que está só, atrozmente só com esse amor que sente por ela. Ela diz que também está só. Não diz com quê. Ele diz: você me seguiu até aqui como teria seguido qualquer um. Ela responde que não pode saber, que nunca tinha seguido ninguém até um quarto. Ela diz que não quer que ele fale com ela, o que quer é que ele faça como costuma fazer com as mulheres que leva à sua garçonnière. Ela lhe suplica que faça assim.

Ele arranca o vestido, joga-o, arranca a calcinha de algodão branco e a leva nua assim até a cama. E então se vira para o outro lado e chora. Ela, lenta, paciente, torna a trazê-lo para perto de si e começa a despi-lo. De olhos fechados, ela o despe. Lentamente. Ele quer fazer gestos para ajudá-la. Ela lhe pede que não se mexa. Deixe. Ela diz que quer fazer ela mesma. Ela faz. Ela o despe. Quando ela pede, ele muda o corpo de lugar na cama, mas pouco, levemente, como para não a despertar.

A pele é de uma suavidade suntuosa. O corpo. O corpo é magro, sem força, sem músculos, podia ser de um doente, de um convalescente, ele é imberbe, sem virilidade a não ser a do sexo, é muito frágil, parece estar à mercê de um insulto, sofrendo. Ela não o olha no rosto. Não o olha. Ela o toca. Toca a suavidade do sexo, da pele, acaricia a cor dourada, a desconhecida novidade. Ele geme, chora. Sente um amor abominável.

E chorando ele faz. Primeiro vem a dor. E então, depois que essa dor é acolhida, ela é transformada, lentamente arrancada, arrastada para o gozo, abraçada a esse gozo.
O mar, sem forma, simplesmente incomparável.


Marguerite Duras, O amante