Levanto-me, mexo-me sob esta luz pálida; vejo-a resvalar pelas minhas mãos e pelas mangas do meu casaco: não se imagina a que ponto ela me causa aversão. Bocejo. Acendo o candeeiro que está em cima da mesa: talvez a sua luz possa sobrepor-se à do dia. Não pode: o candeeiro mal consegue formar, à roda da base, uma poça desprezível. Apago; levanto-me. Na parede há um
buraco branco, o espelho. É uma ratoeira. Sei que vou lá cair. Já está. A coisa cinzenta acaba de surgir no espelho. Aproximo-me e olho para ela; já não posso desviar-me. É o reflexo da minha cara. Muitas vezes, nestes dias, perdidos, fico a contemplá-lo. Não percebo nada desta cara. As dos outros têm um sentido. A minha, não. Nem posso decidir se é bonita ou feia. Acho que é feia, porque me disseram. Mas não é propriedade que me salte à vista. A bem dizer, até me surpreende que se lhe possam atribuir qualidades desse gênero, como se se chamasse bonito ou feio a um bocado de terra ou a um bloco de rocha. Há, todavia, uma coisa cuja vista dá prazer; por cima das regiões moles das faces, acima da testa: é esta bela labareda vermelha que me doura o crânio, são os meus cabelos. Isto sim, é agradável de se ver. É, pelo menos, uma cor nítida: estou contente por ser ruivo. Ali está ela, no espelho, salta aos olhos, irradia fogo. Muita sorte tenho eu: se a minha testa suportasse uma dessas cabeleiras sem brilho que não chegam a decidir-se entre castanho e louro, a minha expressão perder-se-ia no vago, dar-me-ia vertigens. O meu olhar desce lentamente, com enfado, por esta testa, por estas faces: não encontra nada de firme, afoga-se. Evidentemente, aquilo é um nariz, aquilo são uns olhos, aquilo uma boca, mas nada disso tem sentido, nem sequer expressão humana. Todavia, Anny e Vélines achavam que eu tinha um ar de vivacidade; devo estar habituado demais à minha cara. A minha tia Bigeois dizia-me, quando eu era pequeno: «Se olhares muito tempo para o espelho, acabas por ver um macaco.» Olhei muito, muito tempo, com certeza: o que lá vejo está muito abaixo do macaco, na fronteira do mundo vegetal, ao nível dos pólipos. Tem vida, não digo que não; mas não é nessa vida que Anny pensava: noto na imagem do espelho uns leves estremeções, vejo uma carne desenxabida que se distende e palpita com abandono. Os olhos, principalmente, de tão perto, são horríveis. São uma coisa vítrea, mole, cega, orlada de vermelho; parecem escamas de peixe. Amparo-me, com todo o meu peso, à moldura de faiança, aproximo a minha cara do espelho até lhe tocar. Os olhos, o nariz e a boca desaparecem: já nada resta humano. Rugas escuras de ambos os lados do inchaço febril dos lábios, gretas, montículos. Uma sedosa penugem branca corre sobre os grandes declives das bochechas; dois pêlos saem das narinas: é uma carta geológica em relevo. E, apesar de tudo, este mundo lunar é-me familiar. Não posso dizer que lhe reconheça os pormenores. Mas o conjunto produz-me uma impressão de coisa já vista que me entorpece: resvalo lentamente para o sono. Tento reagir: uma sensação viva e brusca libertar-me-ia. Espalmo a mão esquerda na face, puxo pela pele; desenha-se no espelho uma careta. Uma metade inteira do meu rosto cede, o lado esquerdo da boca torce-se e incha, destapando um dente, a órbita abre-se sobre um globo branco, sobre uma carne cor-de-rosa e ensanguentada. Não é o que eu procurava: nada de forte, nada de novo; tudo doce, indeciso, já visto! Estou prestes a adormecer de olhos abertos; já a cara cresce, cresce no espelho, torna-se um imenso halo pálido a boiar na luz...
O que me faz acordar bruscamente é que estou a perder o equilíbrio. Dou por mim a cavalo numa cadeira, de frente para trás, ainda estonteado. Os outros homens terão tanta dificuldade como eu em julgar o seu rosto? Parece-me que vejo o meu, como sinto o corpo, numa sensação surda e orgânica. E os outros? (...) As pessoas que vivem em sociedade aprenderam a ver-se, nos espelhos, tal como aparecem aos seus amigos. Eu não tenho amigos: será por isso que a minha carne é tão nua? Dir-se-ia - sim, dir-se-ia a natureza sem os homens. Perdi o gosto pelo trabalho; já não posso fazer nada, senão esperar a noite. Cinco e meia, Isto está mau, muito mau: cá está ela, a porcaria da Náusea. E, desta vez, é diferente: deu-me num café. Os cafés eram até aqui o meu único refúgio, porque estão sempre cheios de gente e bem iluminados: já nem isso me resta; quando estiver encurralado no meu quarto, já não terei para onde ir. Vinha com ideias de ir para o quarto com a patroa, mas, mal tinha empurrado a porta, Madeleine, a criada, gritou-me: «A patroa não está cá, foi dar umas voltas que tinha a dar.» Senti uma viva decepção no sexo, um longo cocegar desagradável. Ao mesmo tempo, sentia a camisa roçar-me contra a ponta dos mamilos, e era cercado, arrastado, por um lento turbilhão colorido, um turbilhão de névoa, de luzes no fumo, nos espelhos, com os assentos que brilhavam ao fundo; e não via porque é que aquilo se passava ali, nem porque se passava assim. Estava no limiar da porta, hesitava; depois produziu-se um remoinho, uma sombra passou no teto, e senti-me empurrado para diante. Era como se flutuasse, estava encadeado pelas brumas luminosas que, vindas de todos os lados, me penetravam ao mesmo tempo. Madeleine aproximou-se a boiar, despiu-me o sobretudo, e notei que ela tinha arrepiado os cabelos para trás e posto brincos: não a reconhecia. Olhava-lhe para as grandes bochechas que se chegavam cada vez mais para as orelhas. Na covinha das bochechas, abaixo das maçãs do rosto, havia duas manchas cor-de-rosa, bem isoladas, com ar de se aborrecerem no meio daquela carne pobre. As bochechas deslocavam-se, chegavam-se para as orelhas, e Madeleine sorria: «Sr. Antoine, que é que toma?»
Então a Náusea acometeu-me, deixei-me cair no assento, nem sequer já sabia onde estava; via as cores girarem lentamente à minha volta, tinha vontade de vomitar. E aqui está: desde então que a Náusea não me deixa; a Náusea apossou-se de mim.
Paguei. Madeleine levou-me o pires. O meu copo esmaga contra o mármore uma poça de cerveja amarela, onde flutua uma bolha. O assento está desencaixado, no sítio em que me sentei, e sou obrigado, para não escorregar, a fincar as solas dos sapatos no chão, com força. Está frio. À minha direita, uns sujeitos jogam as cartas sobre um pano de lã. Não os vi, ao entrar; senti simplesmente que estava ali uma trouxa morna, meio sobre o assento, meio sobre a mesa do fundo, com pares de braços a agitar-se. Pouco depois, Madelaine levou-lhe as cartas, o pano e as fichas numa tigela de madeira. São três ou cinco, não sei, não tenho coragem para os olhar. Partiu-se uma mola dentro de mim: posso mover os olhos, mas não a cabeça. A minha cabeça está mole, elástica, dir-se-ia que me assenta no pescoço, sem estar presa; se a virar, deixo-a cair.
Mesmo assim, ouço uma respiração curta, e vejo, de vez em quando, com o ratinho do olho, um clarão rubicundo coberto de pelos brancos. É a mão de alguém. Quando a patroa não está, é o primo que toma o lugar dela ao balcão. Chama-se Adolphe. Comecei a olhar para ele quando me ia sentar, e continuei, porque não podia virar a cabeça. Está em camisa, com suspensórios cor de malva; tem as mangas arregaçadas até acima do cotovelo Os suspensórios destacam-se mal da camisa azul; estão apegados, enterrados no azul, mas a sua humildade é falsa: na verdade, não se deixam passar despercebidos; irritam-me com a sua obstinação de carneiros, como se, destinados a chegar ao roxo, tivessem parado a meio sem abandonar as suas pretensões. Tem-se vontade de lhes dizer: «Vá lá, façam-se roxos, e não se fale mais nisso.» Mas não, ficam na incerteza, teimando num esforço que não levam até ao fim. Aí às vezes, o azul que os cerca desbota sobre eles, e encobre-os inteiramente: fico um instante sem os ver. Mas é uma onda apenas; depressa o azul desmaia aqui e além, e vejo reaparecer uns ilhéus duma cor de malva, hesitante, que se dilatam, se reúnem e reconstituem os suspensórios. O primo Adolphe não tem olhos: as suas pálpebras, empapuçadas e reviradas à beira, mal deixam ver a esclerótica. Sorri com um ar sonolento; de vez em quando, assopra, gane e agita-se debilmente como um cão a sonhar. A sua camisa de algodão azul sobressai alegremente do fundo cor de chocolate que é a parede. Também isso me faz náuseas. Ou antes: é isso a Náusea. A Náusea não está dentro de mim: sinto-a além, na parede, nos suspensórios, em toda a parte à minha volta. Constitui um todo com o café; sou eu que estou dentro dela.
Jean-Paul Sartre, A Náusea