O Cardeal Valerio Rinaldi estava sentado no terraço da sua villa e contemplava o dia descendo sobre o mar. A ondulação da terra enchera-se de sombras purpúreas, as colinas tinham pinceladas de ouro e bronze e os telhados da aldeia pareciam de um vermelho incandescente. Uma ligeira brisa agitava-se sobre a terra, levando no seu frêmito o aroma dos lilases e das rosas. O som de risos infantis chegou-lhe, do jardim lá embaixo, onde as suas sobrinhas brincavam entre os mármores órficos. Essa era a sua hora favorita, a hora entre o dia e o crepúsculo, em que o olhar se repousava da crueza do sol e o espírito ainda não fora tocado pela melancolia da escuridão. As cicadáceas estavam imóveis, e os grilos não tinham começado ainda o seu monótono trilar. Rinaldi abriu o livro que tinha pousado no colo e principiou a ler os estranhos caracteres gregos que escondiam as palavras mágicas de Eurípedes.
Ó jardim calmo e luminoso,
Na orla do vasto mar ocidental,
Onde as filhas da Noite em coro cantam,
Sob as árvores de dourados pomos!
Onde o fero argonauta vagabundo
Encontrou, pelo deus Oceano, barrados
Os caminhos, de púrpura tingidos,
Do vasto e ignoto mundo!Onde Atlas, o gigante, vive e guarda
As solenes fronteiras do Empíreo!
Onde o vinho ambrosíaco a jorros flui,
No palácio de Zeus, das claras fontes
Para o festivo e divino alto assento;
Enquanto a sacra Terra, amontoando
Capitosos frutos de sabor raro,
Abençoa o imortal festim, com abundância.
Era um homem de sorte e sabia-o. Poucos eram os que alcançavam a eminência e nela se conservavam com um coração forte e fácil digestão, para desfrutar um jardim calmo, onde cantavam as filhas do crepúsculo.. . Poucos eramos que, na sua profissão, ouviam as vozes cristalinas de crianças no seu próprio jardim, fazendo-as saltar para os joelhos e contando-lhes histórias de fadas, dando-lhes a bênção de um velho padre na hora de irem para a cama.
Outros, sabia ele, haviam morrido prematuramente. Ainda outros sobreviviam, dolorosamente, com olhos míopes, membros anquilosados ou com lentos cânceres, amparados à caridade da Igreja. Tinha poucos motivos de arrependimento, porque esse sentimento lhe parecera sempre uma vaidade alheia à sua natureza. Estava preparado para retirar-se, preparado, sim, por uma mentalidade curiosa e escolar e, também, por uma diversidade de amizades e interesses. Não receava a morte, pois,se tudo corresse normalmente, ainda lhe restava muito tempo de vida, uma vida que ele levara sempre com método, empregando os seus talentos, o melhor que sabia, no serviço da Igreja. Apesar disso, ao entardecer, nas noites de insônia de um velho, ou quando via os camponeses curvados na lavoura da sua propriedade, a pergunta dolorosa surgia-lhe algumas vezes: "Por que tenho eu tanto? Por que vivo tão opulentamente, e outros de maneira tão pobre? Ou será isto uma ironia divina, cuja intenção me será revelada tão-só na eternidade?!"
O velho Eurípedes levantara a mesma dúvida e não lhe soubera responder melhor do que ele.
Eles erram, dispersos sobre as ondas,
Visitando sempre estranhas cidades,
Em demanda de mundos de riqueza
E seguros, todos, de os encontrar;
Mas o jogo da sorte a um homem perde,
E a outro a fortuna em seu colo deixa. . .
E havia ainda outra pergunta. Que fazer com os frutos da vida? Jogá-los fora, como o Irmão Francisco, e percorrer o mundo, rendendo culto à Pobreza? Era já demasiado tarde para isso. A graça da abdicação passara há muito por ele, se é que alguma vez o tocara. Por bem ou por mal, estava encaixado na vida. Não era avarento nem perdulário. Estava educando as filhas da sua irmã e ainda um par de seminaristas. Quando morresse, metade da sua fortuna iria para a família e a outra para a Igreja. O pontífice já aprovara essa disposição. Que motivo tinha, então, para preocupar-se? Nenhum, aparentemente, exceto uma certa mediocridade de espírito, talvez, e uma necessidade instante da sua natureza de possuir o melhor que havia nos dois mundos. Deus Poderoso fora o Criador de ambos, do visível e do invisível, para que o homem os habitasse e deles se beneficiasse. Criara o próprio homem e era intenção da sua misericórdia não esperar mais que o justo reembolso pelo maior ou menor talento que concedera a cada criatura humana. Rinaldi era suficientemente inteligente para não se alegrar demasiado com a sua boa fortuna. Contudo, tampouco poderia chorar, pois não via razões para lamentos. Assim, suspirou de leve com a aproximação das sombras noturnas, e continuou a ler a história de Hipólito, filho de Teseu:
Entrar nas trevas!
Agora, deixa-me que morra e passe
Ao mundo sob a Terra, e à triste Noite!
Já que, ó mais querida de todas, não mais
Estás ao meu lado; e é a morte que te tocou mais
Que a Morte que te tragou. . .
Quando, afinal, tombou a noite, Rinaldi fechou o livro e entrou em casa, para as orações vespertinas com a sua família, preparando-se em seguida para jantar com o Cardeal Leone. O grisalho inquisidor estava tão rabugento e mal-humorado como sempre, mas suavizou-se logo que as crianças entraram na sala. Quando se aproximaram dele três meninas morenas, para receber a sua bênção, seus olhos enevoaram-se e as mãos tremeram-lhe, ao tocar-lhes nas frontes reverentes. As meninas afastaram-se depois, respeitosamente, mas Leone voltou a chamá-las para junto de si e falou-lhes com gravidade, como qualquer avô faria, sobre as suas lições, as suas bonecas e o momentoso acontecimento de um dia no jardim zoológico. Rinaldi sorria, à socapa, ao ver o velho tão facilmente domado. Ainda mais surpreendido ficou quando o velho guardião de tantos mistérios mergulhou na decifração de um quebra-cabeça, pedindo a Rinaldi que deixasse ficarem as crianças, mais algum tempo, para o ajudarem a terminar o jogo. Logo que, por fim, as meninas foram para a cama, e o jantar foi anunciado, Leone se mostrava estranhamente calmo, dizendo a Rinaldi:
— Vós sois um homem de sorte, meu caro. Deveríeis render graças a Deus por cada dia de vida.
— E rendo — respondeu o antigo camerlengo. — Incomoda-me ter feito tão pouco por merecer a felicidade que tenho.
— Gozai-a, meu amigo. É a mais pura que jamais podereis conhecer. Leone acrescentou depois, como uma recordação dolorosa:
— Quando ainda estava no seminário, um dos meus mestres dizia que todos os padres deviam educar uma criança, pelo menos, durante cinco anos. Nessa altura, não compreendi o que ele queria dizer. Agora, já compreendo.
— Tendes ainda parentes? — perguntou Rinaldi.
— Já não tenho. Eu costumava pensar que, como padres, não precisávamos deles. É uma ilusão,claro... Sentimo-nos tão solitários dentro do hábito como fora dele. Leone resmungou ainda umas palavras e sorriu: — Todos acabamos sentimentais ao envelhecer... Jantaram sós, como competia a um par de príncipes, homens que tinham em si alguns dos maiores segredos da Igreja.
Morris West, As Sandálias do Pescador