domingo, 6 de janeiro de 2013

Morris West, As sandálias do pescador

CAPÍTULO PRIMEIRO


O papa morrera. Já o camerlengo fizera a proclamação. O mestre-de-cerimônias, os notários e os médicos já o haviam consignado, sob atestação, à eternidade. O seu anel fora dissolvido e os seus selos, quebrados. Os sinos haviam dobrado por toda a cidade. O cadáver do pontífice fora entregue aos embalsamadores, para que se convertesse em objeto de veneração dos fiéis. Agora encontrava-se entre círios brancos, com a Guarda Nobre em fúnebre vigília, sob os afrescos do Juízo Final, de Michelangelo,na Capela Sistina.

O papa morrera. Amanhã, todo o clero da basílica viria buscá-lo, para o expor ao público na Capela do Santíssimo Sacramento. Seria enterrado no terceiro dia, revestido de seus paramentos de Sumo Pontífice: mitra na cabeça, um véu purpúreo sobre o rosto e um manto vermelho, orlado de arminho, para o manter quente na cripta. As suas condecorações e as moedas que mandara cunhar seriam enterradas com ele, para sua identificação, se viesse a ser exumado mil anos depois. Seria encerrado em três urnas: uma, de madeira de cipreste; a segunda, de chumbo, para o isolar da umidade e preservar-lhe o brasão e a certidão de óbito; a última, de olmo, para que se assemelhasse, pelo menos,aos outros homens que vão para a sepultura em caixões de madeira.

O papa morrera. Por ele rezariam, agora, como por qualquer outro mortal: "Não julgueis, Senhor,o vosso servo... Salvai-o da Morte Eterna". Baixá-lo-iam, depois, à gruta situada sob o altar-mor, onde talvez, mas apenas talvez, se misturaria empoeira à poeira de Pedro; um pedreiro emparedaria o túmulo e fixaria uma lápide de mármore com seu nome, o seu título e as datas de seu nascimento e morte.

O papa morrera. Seria sufragado com nove dias de missa e nove absolvições, das quais, tendo sido em vida maior distribuidor que os outros homens, mais necessitaria após a morte. Depois, seria esquecido.

O Trono de Pedro achava-se vazio, a vida da Igreja estava em síncope, e o Todo-Poderoso sem representante neste agitado planeta.

O Trono de Pedro achava-se vazio. Assim, os cardeais do Sacro Colégio sobrepunham-se à autoridade do Pescador, embora lhes faltasse o poder para exercê-la. O poder não residia neles,mas em Cristo, e ninguém poderia assumi-lo sem eleição legal.

O Trono de Pedro achava-se vazio. Por isso duas medalhas foram cunhadas, uma delas para o camerlengo, ostentando uma umbela sob chaves cruzadas. Não havia ninguém sob a umbela, e isso era indicação, mesmo para os mais ignorantes, de que não existia incumbente para a Cadeira dos Apóstolos, e tudo quanto se fizera até aí tivera, tão-só, um caráter interino. A segunda medalha era para o governador do conclave, a quem competia reunir os cardeais da Igreja, encerrá-los nas câmaras do conclave e lá mantê-los até que se elegesse novo papa.

Todas as novas moedas e novos selos postais emitidos pela Cidade do Vaticano, durante este período, traziam as palavras sede vacante, palavras essas que mesmo os estranhos à latinidade podiam entender como: "Enquanto a Cadeira está vazia". O jornal do Vaticano apunha diariamente a mesma indicação, na sua primeira página, juntamente com uma tarja negra de luto,até que o novo pontífice fosse eleito.

Todos os serviços noticiosos do mundo tinham um representante acampado à porta do Departamento de Imprensa do Vaticano; e de cada canto do globo chegaram anciãos, curvados ao peso dos achaques, para vestir o escarlate dos príncipes e sentarem-se em conclave, a fim de indicar um novo papa.(...)

Rinaldi a todos acolhia com uma seca e magra mão, e um sorriso ligeiramente irônico. Recebia de todos o juramento de conclavista: que cada um compreenderia e observaria, rigorosamente, todas as regras da eleição, conforme dispostas pela Constituição Apostólica de 1945; que cada um deveria, sob pena de excomunhão reservada, preservar o sigilo da eleição; que nenhum deles deveria servir, pelo seu voto, os interesses de qualquer poder secular e que, se fosse eleito papa, não poderia abdicar de qualquer direito temporal da Santa Sé, necessário à sua independência.

Nenhum deles recusou o juramento; mas Rinaldi,que possuía excelente senso de humor, muitas vezes perguntava a si mesmo para que seria necessário recebê-los... a não ser que tivesse como causa a desconfiança da Igreja pelos seus príncipes. Os velhos são muito suscetíveis; por isso, sempre que lhes expunha os termos do juramento, Valerio Rinaldi emprestava ligeira ênfase às recomendações da Constituição Apostólica, para que as reuniões do conclave fossem conduzidas com prudência, caridade e calma singulares.

A sua advertência não era injustificada. A história das eleições papais era tumultuosa; por vezes,até demasiado turbulenta. Quando Dâmaso, um espanhol, foi eleito, no século IV, houve massacre nas igrejas da cidade. Leão V foi aprisionado, torturado e assassinado pelos teofilatas, disso resultando que, durante quase um século, a Igreja esteve governada por fantoches, dirigidos pelas mulheres teofilatas, Teodora e Marózia. No conclave de 1623, oito cardeais e quarenta dos seus coadjuvantes morreram de malária, e na eleição do Santo Padre Pio X houve cenas brutais e palavras menos reverentes.

Em tudo e por tudo, concluíra Rinaldi, embora fosse bastante arguto para reservar estas conclusões para si próprio, era bem melhor não confiar demais no temperamento e nas vaidades frustradas dos velhos. Isso, por associação de idéias, levava-o ao problema de alojar e alimentar oitenta e cinco deles, com seus fâmulos e ajudantes, até que terminasse a eleição. Alguns, ao que parecia, teriam de ocupar as dependências da Guarda Suíça. Nenhum deles podia ser alojado muito longe dos banheiros, e todos teriam de ser providos de cozinheiros,barbeiros, médicos, cirurgiões, criados, porteiros,secretários, mordomos, carpinteiros,canalizadores, bombeiros (no caso de algum prelado morrer de charuto na mão!). Se algum cardeal (que Deus nos livre!) estivesse preso ou sob qualquer acusação, teria de ser conduzido para o conclave e exercer as suas funções, sob escolta militar.

Desta vez, porém, nenhum deles estava preso — exceto Krizanic, da Iugoslávia, que estava na cadeia pela sua fé, o que era um caso muito diferente —, e, como a administração do falecido papa fora muito eficiente, o Cardeal Valério Rinaldi chegara a ter tempo para encontrar-se com seu colega Leone, do Santo Ofício, que era também o reitor do Sacro Colégio. Leone justificava bem o seu nome. Tinha modos leoninos e um temperamento agressivo. Era,além disso, romano até a medula. Roma era,para ele, o centro do mundo, e o centralismo, na sua opinião, uma doutrina tão imutável como a Santíssima Trindade e a procissão do Espírito Santo. Com o seu grande bico de águia e o seu queixo proeminente, parecia um senador dos tempos de Augusto. Seus olhos pálidos olhavam o mundo com uma vincada reprovação.

Qualquer inovação era, para o Cardeal Leone, um primeiro e perigoso passo para se cair na heresia. Sentara-se no Santo Ofício como um feroz cão de guarda, cujo pêlo se eriçaria ao mais leve e estranho som na interpretação ou no exercício da doutrina: Um dos seus colegas franceses dissera, com mais ironia do que caridade, que Leone cheirava a fogueira. A opinião geral, contudo, era que ele preferiria mergulhar a mão nas chamas da fogueira a subscrever o menor desvio da ortodoxia.

Rinaldi respeitava-o, conquanto nunca tivesse chegado a gostar muito dele. Por esse motivo,suas relações mútuas limitavam-se às cortesias da profissão comum. Esta noite, porém, o velho leão parecia em melhor disposição de espírito e mais aberto à conversa. Seus olhos pálidos e vigilantes foram iluminados por um momentâneo lampejo de divertimento:

—  Já estou com oitenta e dois anos, meu caro, e já enterrei três papas. Começo a me sentir muito só.

Se desta vez não encontrarmos um homem mais novo — disse Rinaldi suavemente — até pode ser que enterreis o quarto. Leone olhou-o rapidamente, sob as espessas sobrancelhas:

—Que significará o vosso comentário?

Rinaldi encolheu os ombros e estendeu as mãos,num gesto romano:


— Apenas o que eu disse. Já estamos todos bastante velhos. Só meia dúzia, entre todos nós,poderia dar à Igreja o que ela necessita neste momento: personalidade, uma política objetiva e de decisões, tempo e continuidade para que essa política dê frutos.

— E o meu caro Rinaldi pensará que faz parte dessa meia dúzia?

Rinaldi sorriu, com uma ironia velada:

— Sei que não. Quando o novo papa for escolhido, seja ele quem for, vou pedir-lhe demissão do cargo e irei para casa dedicar-me às coisas domésticas. Levei quinze anos para fazer um jardim em minha casa. Gostaria de desfrutá-lo durante os anos que me restam.
— Achais que eu tenha alguma possibilidade de ser eleito? — perguntou Leone, sem rodeios.

—Espero que não — respondeu Rinaldi. Leone soltou uma gargalhada:

—Não vos preocupeis. Eu bem que não serei eleito. A Igreja precisa de alguém muito diferente; alguém que... — hesitou, procurando a frase adequada — alguém que tenha compaixão das massas humanas, que as veja como Cristo as viu... rebanho sem pastor.


Morris West, As sandálias do pescador