af. 16 (trecho)
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"Sendo assim, o fato de ser refutável não é o menor encanto de uma teoria: exatamente por isso ela atrai os cérebros mais sutis. Parece que a teoria cem vezes refutada do 'livre-arbítrio' deve a sua persistência somente a esse encanto: - vez ou outra surge alguém que se julga capaz de refutá-la."
af. 18
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" - Digamos que em todo o querer há, primeiramente, uma pluralidade de sensações, ou seja: a sensação do estado do qual queremos nos afastar, a sensação do estado do qual queremos nos aproximar, a sensação desse 'afastar' e 'aproximar', e além disso uma sensação muscular concomitante que, sem que movimentemos 'braços e pernas', entra em jogo desde que passamos a 'querê-la' ".
"o que recebe o nome de 'livre-arbítrio' é, essencialmente, o afeto de superioridade em relação àquele que deve obedecer: 'eu sou livre, ELE deve obedecer' - essa consciência é inerente a toda vontade, assim como aquela tensão da concentração, esse olhar direto que fixa exclusivamente um objeto, essa valorização absoluta da 'necessidade de fazer isto e não aquilo', essa certeza íntima de que será obedecido, e tudo mais que pertence ao estado próprio do que comanda. Um homem que quer - comanda algo dentro de si, que obedece, ou que ele julga obedecer."
"Livre-arbítrio" - eis a expressão para esse estado complexo de prazer daquele que quer, que comanda e ao mesmo tempo se identifica com o executante, que goza como tal o triunfo obtido sobre os obstáculos, mas imagina que é a sua vontade quem no fundo supera as dificuldades."
af. 19 (trechos)
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"Supondo que alguém descobrisse a rústica ingenuidade desse conhecido conceito de 'livre arbítrio' e o suprimisse de seu cérebro, eu lhe pediria que sua clarividência iluminista desse mais um passo e riscasse igualmente do seu cérebro o contrário desse monstruoso conceito: refiro-me ao 'arbítrio não livre', que não passa de um abuso de causa e efeito. Não se deve erroneamente coisificar 'causa e 'efeito' (...); devemos usar 'causa' e 'efeito' somente como puros conceitos, como ficções convencionais para fins de terminologia, de compreensão, e não de explicação."
af. 21 (trecho)
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"Penso naqueles a quem chamam cínicos, ou seja, aqueles que simplesmente reconhecem a besta,a vulgaridade, a 'regra' em si e que, além disso, possuem ainda suficiente espiritualidade e estímulo para falar, diante de testemunhas, sobre si mesmos e sobre seus iguais (...) O cinismo é a única forma sob a qual as almas vulgares tocam de leve no que se chama sinceridade; e o homem superior deve apurar o ouvido perante qualquer variante do cinismo , e felicitar-se toda vez que ouvir expressar-se o farsante sem pudor ou o sátiro científico. Há casos em que o encantamento chega a se misturar ao nojo: (...)"
af. 26 (trecho)
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"Ser independente é uma questão que diz respeito a poucos - é um privilégio dos fortes. Quem no entanto buscar essa independência, mesmo sem ter necessidade, embora tenha todo o direito a isso, demonstra desse modo que provavelmente não apenas é forte, mas também audacioso até à temeridade. Mete-se num labirinto, multiplica ao máximo os perigos da própria vida; e o menor desses perigos não está em que ninguém veja como e onde se perde, despedaçado na solidão por qualquer subterrâneo Minotauro da consciência. Supondo que alguém pereça, o fato estará tão distante do entendimento dos homens que estes não o sentem, nem o compreendem - e ele já não pode regressar! Não pode regressar sequer para a compaixão dos homens!"
af. 29
Nietzsche, Além do Bem e do Mal
Editora Rideel, p. 29-47
Trad. Heloisa da Graça Burati