segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Aldous Huxley, Admirável Mundo Novo

 - Mas Deus é a razão de ser de tudo o que é nobre, belo, heróico. Se tivessem um Deus...

 - Meu jovem amigo, a civilização não tem nenhuma necessidade de nobreza ou heroísmo. Essas coisas são sintomas da incapacidade política. Numa sociedade convenientemente organizada como a nossa, ninguém tem oportunidade para ser nobre ou heróico. É preciso que as coisas se tornem profundamente instáveis para que tal oportunidade possa apresentar-se. Onde houver guerras, onde houver obrigações de fidelidade múltiplas e antagônicas, onde houver tentações a que se deva resistir, objetos de amor pelos quais se deva combater ou que seja preciso defender, aí, evidentemente, a nobreza e o heroísmo terão algum sentido. Mas não há guerras em nossos dias. Toma-se o maior cuidado em evitar amores extremados, seja por quem for. Não há nada que se assemelhe a obrigações de fidelidade antagônicas; todos são condicionados de tal modo que ninguém pode deixar de fazer o que deve. E o que se deve fazer é, em geral, tão agradável, deixa-se margem a tão grande número de impulsos naturais, que não há, verdadeiramente, tentações a que se deva resistir. E se alguma vez, por algum acaso infeliz, ocorrer de um modo ou de outro qualquer coisa desagradável bem, então há o soma, que permite uma fuga da realidade(...)

- Mas as lágrimas são necessárias. Não se lembra do que disse Otelo? “Se depois de toda tempestade vêm tais calmarias, então que soprem os ventos até acordar a morte!” (...)

- Encantador! Mas nos países civilizados – disse Mustafá Mond – não há moscas nem mosquitos que piquem. Há séculos que nos livramos completamente deles.

O Selvagem inclinou a cabeça em aquiescência, franzindo o sobrolho.

- Livraram-se deles. Sim, é bem o modo de os senhores procederem. Livrar-se de tudo o que é desagradável, em vez de aprender a suportá-lo. Se é mais nobre para a alma sofrer os golpes de funda e as flechas da fortuna adversa, ou pegar em armas contra um oceano de desgraças e, fazendo-lhes frente, destruí-las... Mas os senhores não fazem nenhuma coisa nem outra. Não sofrem e não enfrentam. Suprimem, simplesmente, as pedras e as flechas. É fácil demais. (...)  O que os senhores precisam – disse – é de alguma coisa com lágrimas, para variar. Nada custa bastante caro aqui. (...)  Expor o que é mortal e inseguro ao acaso, ao perigo, à morte. Isso não é alguma coisa? – perguntou ele, erguendo os olhos para Mustafá Mond. – Não é alguma coisa viver perigosamente?

- Sem dúvida nenhuma – respondeu o Administrador. – Os homens e as mulheres necessitam que se lhes estimulem de tempos em tempos as cápsulas supra-renais.

- O quê? - perguntou o Selvagem que não compreendera.

- É uma das condições da saúde perfeita. Foi por esse motivo que tornamos obrigatórios os tratamentos de S.P.V.

- S.P.V.?

- Sucedâneo de Paixão Violenta. Regularmente, uma vez por mês, inundamos todo o organismo com adrenalina. É o equivalente fisiológico completo do medo e da cólera. Todos os efeitos tônicos de assassinar Desdêmona e de ser assassinada por Otelo, sem nenhum dos inconvenientes.

- Mas eu gosto dos inconvenientes.

- Nós, não. Preferimos fazer as coisas confortavelmente.

- Mas eu não quero conforto. Quero Deus, quero a poesia, quero o perigo autêntico, quero a liberdade, quero a bondade. Quero o pecado.

- Em suma – disse Mustafá Mond -, o senhor reclama o direito de ser infeliz.

- Pois bem, seja – retrucou o Selvagem em tom de desafio. – Eu reclamo o direito de ser infeliz.

- Sem falar no direito de ficar velho, feio e impotente; no direito de ter sífilis e câncer; no direito de não ter quase nada que comer; no direito de ter piolhos; no direito de viver com a apreensão constante do que poderá acontecer amanhã; no direito de contrair a febre tifóide; no direito de ser torturado por dores indizíveis de toda espécie.

Houve um longo silêncio.

- Eu os reclamo todos –-  disse finalmente o Selvagem.

Mustafá Mond deu de ombros.

- À vontade – respondeu.

Aldous Huxley - Admirável Mundo Novo
Editora Globo, pág.228-232
Tradução: Vital de Oliveira
                 Lino Vallandro