quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

W. Somerset Maugham, Servidão Humana

- Soube que não faz grande opinião dos meus versos.
Philip sentiu-se embaraçado.
- Não é bem isso - respondeu. - Gostei muito de os ler.
- Não procure poupar a minha suscetibilidade - retorquiu Cronshaw, com um gesto da mão gorda. - Não empresto nenhuma importância exagerada aos meus trabalhos poéticos. A vida aí está para ser vivida e não para que escrevamos a seu respeito. Meu objetivo é procurar as múltiplas experiências que ela oferece, arrancando a cada momento toda a emoção que ela apresenta. Considero meus escritos como uma graciosa habilidade que, ao invés de absorver a existência, acrescenta-lhe prazer. E quanto à posteridade - que o diabo a carregue!
Philip sorriu, pois entrava pelos olhos que esse artista da vida não produzira mais do que um mísero borrão. Cronshaw fitou-o meditativamente e encheu o copo. Pediu, depois, ao garçom que lhe trouxesse uma carteira de cigarros.
- Você acha graça por me ouvir falar assim quando sabe que eu sou pobre e vivo numa água-furtada em companhia de uma fêmea vulgar que me engana com cabeleireiros e garçons de café. Traduzo livros miseráveis para o público Inglês e escrevo artigos a respeito de quadros desprezíveis que nem ao menos condenados merecem ser. Mas faça o favor de me dizer: qual é o sentido da vida?
- Ora, a pergunta é bastante difícil. Por que não a responde você mesmo?
- Não, porque isso é inútil a menos que a gente o descubra por si próprio. Para que supõe que está no mundo?
Philip nunca havia pensado nisso. Após meditar um momento, respondeu:
- Oh, não sei! Acho que estamos aqui para cumprir o nosso dever, fazer o melhor uso possível de nossas faculdades e evitar magoar os outros.
- Em resumo: não faças a outrem o que não queres que te façam, não é assim?
- Creio que sim.
- Cristianismo.
- Não, não é - protestou Philip, indignado. - Isso nada tem a ver com Cristianismo. É apenas moral abstrata.
- Moral abstrata é coisa que não existe!
- Nesse caso, suponha que, ao sair daqui, sob a influência da bebida, esquecesse a sua bolsa sobre a mesa. Por que razão acha que eu a restituiria? Não havia de ser por medo da polícia.
- Seria o temor ao inferno, se você pecasse, e a esperança  no céu, se fosse justo.
- Mas se eu não acredito no céu nem no inferno!
- Pode ser. Kant também não acreditava ao conceber o Imperativo Categórico. Você renegou um credo, mas conservou a ética desse credo. É ainda um cristão, para todos os efeitos, e se existir um Deus no céu  receberá sem dúvida a sua recompensa. O Todo-Poderoso não pode ser tão tolo como as Igrejas o representam. Desde que obedeçamos às suas leis, não me parece que ele ligue importância ao fato de acreditarmos ou não na sua existência.
- Mas se eu esquecesse aqui a minha carteira, tenho certeza de que me restituiria - disse Philip.
- Não por motivos de moral abstrata, mas somente por medo da polícia.
- As probabilidades de a polícia descobrir o furto seriam de um para mil.
- Meus antepassados viveram tanto tempo uma existência civilizada que o medo da polícia me impregnou os próprios ossos. A filha  de meu concierge não vacilaria um só momento. Responderá, naturalmente, que ela pertence às classes criminosas. Nada disso. Ela está, apenas, isenta dos preconceitos vulgares.
- Nesse caso vai por água abaixo a honra, a virtude, a bondade, a decência, tudo enfim - observou Philip.
- Já alguma vez cometeu um pecado?
- Não sei, mas suponho que sim.
- Fala como um ministro dissidente. Pois eu nunca cometi pecado algum.
Metido no seu sovado casacão, a gola voltada para cima, o chapéu enterrado na cabeça, com seu rosto rechonchudo e vermelho e seus pequeninos olhos cintilantes, Cronshaw parecia extraordinariamente cômico. Mas Philip estava levando a coisa muito a sério para rir.
- Nunca praticou algo de que se arrependesse mais tarde?
- Como poderia arrepender-me de haver praticado um ato inevitável? - perguntou Cronshaw, em troco.
- Mas isso é fatalismo.
- A ilusão nutrida pelo homem de que sua vontade é livre tem raízes tão profundas que estou a ponto de aceitá-la. Procedo como se fosse um agente livre. Mas, quando um ato se realiza, está claro que todas as forças o universo, desde toda a eternidade conspiram para motivá-lo e nada que eu pudesse fazer o teria impedido. Era um ato inevitável. Se foi bom, não me posso arrogar mérito algum: se foi mau, não posso aceitar censura alguma.
- Estou com a cabeça às voltas - disse Philip.
- Beba um gole de uísque - redarguiu Cronshaw, passando-lhe a garrafa. - Não existe nada melhor que uísque para clarear as ideias. É natural que você tenha o espírito lerdo, uma vez que insiste em beber cerveja.
Philip sacudiu a cabeça e Cronshaw continuou:
- Você não é um mau rapaz, mas acontece que não bebe. A sobriedade perturba a conversação. Quando falo a respeito do bem e do mal...
- Philip notou que ele retomava o fio do discurso - falo convencionalmente. Não atribuo significação alguma a essas palavras. Ninguém me induzirá a instituir uma hierarquia de ações humanas, emprestando dignidade a umas e vituperando outras. Os termos vício e virtude não possuem sentido algum para mim. Não louvo nem censuro. Apenas aceito. Sou a medida de todas as coisas. Sou o centro do universo.
- Mas existem outras pessoas no mundo - objetou Philip.
- Eu falo apenas por mim. Só me apercebo dessas outras pessoas na medida em que elas limitam as minhas atividades. O mundo também gira em torno delas, e cada uma julga ser o centro do universo. Meus direitos sobre elas não vão além do alcance de minha força. O que eu posso fazer é o limite do que devo fazer. Somos gregários, e por isso vivemos em sociedade. E a sociedade se conserva unida por meio da força, a força das armas (isto é, a polícia) e a força da opinião pública. Dum lado tens a sociedade; do outro, o indivíduo:  cada um dos dois é um organismo que luta pela sua conservação. É a força contra a força. Eu me encontro só, obrigado a aceitar a sociedade, o que faço de bom grado, uma vez que ela, em troca dos impostos que eu pago, me protege a mim (um fraco) contra a tirania de pessoas mais fortes do que eu. Mas eu me submeto às suas leis porque sou compelido a isso. Não lhe reconheço a justiça nem sei o que isso seja, pois conheço apenas a força. E, depois de pagar uma taxa para que o policial me proteja e (se eu viver num país onde o recrutamento militar for obrigatório) depois de servir no exército que guarda a minha casa e a minha terra contra o invasor, estou quite com a sociedade. Quanto ao mais, contrabalanço a sua força com a minha astúcia. Ela cria leis que visam à sua própria conservação, e se eu as violar sou morto ou encarcerado. A sociedade tem o poder de fazer isso e, por conseguinte, o direito. Se eu violar as leis, aceitarei a vingança do Estado, mas não a considerarei um castigo nem tampouco me julgarei culpado. A sociedade procura atrair-me para o seu serviço acenando-me com honrarias, riquezas e o bom conceito de meus semelhantes. Sou, porém, indiferente à opinião deles. Desprezo e posso muito bem dispensar a riqueza.
- Mas se todos pensassem assim, o mundo viria abaixo num instante.
- Nada tenho que ver com os outros. Só me ocupo comigo mesmo. Tiro proveito do fato de que a maior parte da humanidade é levada, com o olho nas recompensas, a realizar coisa que, direta ou indiretamente, vem beneficiar-me.
- Considero esse um modo extremamente egoísta de encarar as coisas - disse Philip.
- Julga, por acaso, que o homem seja capaz de fazer alguma coisa a não ser por propósitos egoístas?
- Julgo.
- É impossível que assim seja. Quando ficar mais velho, compreenderá que a coisa mais necessária para tornar este mundo um lugar tolerável é reconhecer o inevitável egoísmo da humanidade. É absurdo exigir altruísmo por parte dos outros: para que sacrificariam eles os seus desejos pelos nossos? Quando você quiser compreender que cada um, no mundo, se preocupa apenas consigo mesmo, exigirá menos dos seus semelhantes. Já não lhe causarão decepções e passará a olhá-los com mais simpatia. Os homens buscam, na vida, uma única coisa: o prazer.
- Não, não, não! - exclamou Philip.
Cronshaw riu por entre os dentes.
- Empina-se como um potro amedrontado só porque usei de uma palavra a que o seu cristianismo atribuiu uma significação depreciativa. Vocês possuem uma hierarquia de valores e o prazer está colocado bem embaixo. No entanto fala, com um pequeno arrepio de satisfação, em dever, caridade e verdade. Pensa existir apenas o prazer dos sentidos. Os infelizes escravos que fabricaram a sua moral desprezaram uma satisfação que dificilmente poderiam gozar. Não se mostraria tão alarmado se eu, em vez de falar sobre o prazer, falasse sobre a felicidade. A palava é menos chocante e transporta-o, em pensamento, da pocilga de Epicuro para o seu jardim. Falarei, não obstante, do prazer, pois vejo que é a ele que os homens aspiram, e nada me prova que aspirem à felicidade. É o prazer que se esconde por trás de todas as virtudes que praticamos. O homem pratica tais e tais atos porque acha que sejam bons para ele; e quando são bons também para os outros, são considerados virtuosos. Se encontra prazer em dar esmolas, é caridoso; se lhe agrada auxiliar os outros, é benevolente; se experimenta satisfação em trabalhar em prol da sociedade, é filantropo. Mas você visa apenas a um prazer individual quando dá uma moeda a um mendigo, assim como eu vivo unicamente a um prazer pessoal quando bebo uísque com soda. Eu, que sou menos hipócrita que você, não aplaudo a mim mesmo pelo meu prazer nem solicito a sua admiração.
- Mas nunca conheceu pessoas que praticassem atos de que não gostassem?
- Não. A sua pergunta é tola. Quer dizer que às vezes as pessoas aceitam uma dor imediata de preferência a um prazer imediato. A objeção é tão tola como o modo por que você se exprimiu. É certo que os homens aceitam, em vez de um prazer imediato. uma dor imediata, mas isso unicamente porque esperam gozar, no futuro, um prazer maior. Muitas vezes o prazer é ilusório, mas esse erro de cálculo não implica refutação da regra geral. Você está confuso porque imaginava que os prazeres fosse apenas sensuais. Mas fique certo de que um homem que morre por sua pátria o faz por sentir prazer nisso, da mesma forma por que um homem que come picles o faz por apreciar esse gênero de conserva. É uma lei da criação. Se fosse possível ao homem preferir a dor ao prazer, a raça humana já estaria extinta há muito tempo.
- Mas se tudo isso for verdade - perguntou Philip -, qual é a utilidade de tudo? Se excluirmos o dever, a bondade e a beleza, por que somos trazidos ao mundo?
- Aí vem o maravilhoso Oriente para sugerir uma resposta - volveu Cronshaw, sorrindo.

W. Somerset Maugham, Servidão Humana