quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Bruna Lombardi, Diário do Grande Sertão


imagem: Paulo Salomão

"Traços das mulheres da minha família se manifestam em mim. Um estado, uma espécie de rasgo no espírito que conheço desde criança e que observei a vida inteira nas mais diversas luzes. Impulsos. Mulheres que sempre senti se movimentarem numa estreita ligação com a vida. Tive a sorte de ter a mesma inquietação, o mesmo desespero puro que elas trazem e percebo que, como elas, me oriento dentro de uma grande desordem, e meu instinto me rege por caminhos os mais inesperados.
Sei também que é difícil explicar, difícil entender essas mulheres porque elas gravitam num ponto de luz acima, enquanto mexem no constante lado prático da vida.
Trabalham, cozinham, cuidam dos filhos, compram coisas inúteis, agitadas como todas as mulheres, embora seja fácil identificar alguma coisa de insólito em seu comportamento.
Alguma fantasia, algum desejo de ser.
Nelas o sonho é tão perceptível. Tão claro. Acho que nunca viram as coisas como elas são, mas sempre através do filtro de quem imagina como elas poderiam ser. O sonho. Eram jovens nos anos 40 e acreditaram em tudo. O mito do cinema fazia a cabeça mais forte do que o cotidiano, que a perspectiva de guerra, a escassez.
A revolução industrial determinando a ideia de felicidade através do consumo. O mito do cinema mais forte que as resumidas possibilidades de realidade. O sonho e sua dimensão. Louras platinadas, beijos de amor, escadarias.
Ela não devia ter tomado aquele avião no final de Casablanca. Será que saberíamos viver sem o sonho? E por que ele nos exige tanta entrega? Nos torna tão desfrutáveis? Será que sonhar não é uma necessidade tão vital quanto outras que nos parecem mais importantes?
Gostaria de tomar champagne todo dia', uma delas disse. A ideia do champagne a estimulava mais do que o gosto. Tive uma tia-avó que se casou aosquinze anos seduzida pela ideia de usar um robe com plumas que viu num filme. Fugiu de casa depois. Durante a guerra entrou pra Cruz Vermelha apaixonada por um médico. Viajou o mundo todo atrás dele e acabou se tornando uma das primeiras cirurgiãs da América Latina, mudando geograficamente um ramo da família.
Um filme, um robe de seda, plumas. Um dia quero escrever sobre essas belas mulheres. Belas e um pouco absurdas. A força do sonho penso que é basicamente o que nos move.
Il sogno Che move l’amore e Le altre stelle. Serão os mesmos, os sonhos? Mudam os sonhos através das décadas? Mudam de roupagem, de ângulo, de proposta, mas basicamente, intrinsecamente, permanecem os mesmos?
Tudo me vem à tona aqui e agora. Estou longe de tudo que se chama realidade e meu trabalho é fabricar um sonho. Uma fantasia. Uma belíssima história de amor. Vivo o avesso de tudo, a contradição das noções de felicidade com as quais sempre tentaram me convencer. Passo o dia vestida de homem, os sertanejos daqui pensam que sou homem, vivo um total e absoluto desconforto e me descubro feliz.
Estamos recriando uma realidade que quanto mais próxima da realidade e mais íntima do sonho, melhor.
Vejo no meu rosto sinais do rosto dessas mulheres. Me orgulho disso. O tempo encarregará de completar essas marcas. Me fará rir, chorar, viver as coisas com tanta intensidade que tudo ficará impresso. Meu rosto vai revelar a mulher que venho sendo e fui, e sou, o tempo vai tornar claro que meu lado esquerdo é sonhador e o meu direito tem a manha da vida. O tempo me torna cada vez mais próximo das mulheres da minha família e me reserva sulcos, rugas e a possibilidade de me tornar insuportavelmente bela.


Bruna Lombardi, Diário do Grande Sertão