quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Fazes-me falta

alejandra baci


Feliz assim por teres tudo o que sou?
Feliz por perderes tudo o que sei?
Só não te dou o que não serei.
Não, a minha morte, não ta dou. (Pedro Tamen)

Não basta morrer para conhecer o sorriso de Deus — mesmo que, como foi o meu caso, se tenha vivido abismada nele uma vida inteira. Quando o pior acontecia, aquele sorriso descia às minhas trevas com um soluço de baloiço, um gingar de gonzos arrancado às cordas da infância. Eu sentava-me nele e subia, balouçando, até à luz. O pior aconteceu-me cedo, tive sorte. Deus procura primeiro os que sofrem antes do conhecimento específico da dor, talvez porque os outros sabem demasiado para poderem ser salvos.
Tu dizias que era ao contrário: que Deus nasce da ignorância própria dos sofrimentos prematuros. Mas tu, meu aluno dilecto, cedo te deixaste povoar pelo excesso do saber. Deus não sabia nada do Universo quando o criou. Imagino que se sentiria só.
Imagino que num momento impreciso essa solidão se terá tornado maior do que Ele próprio, estourando numa gigantesca flor de luz. E imagino-o, depois, tentando dar um sentido particular a cada uma das pétalas dessa luz dispersa.
Agora que saí do corpo que fui - para me tornar pólen, poeira nos teus olhos, pura imaginação de mim - imagino-o melhor ainda, ébrio de luz, lúcido, encandeado por um Lúcifer oculto e criador incrustado no seu próprio ser, em estado de paixão com a história desencadeada pela sua omnipotente solidão. E balouço no Seu sorriso outra vez, a vez definitiva porque o meu corpo está lá em baixo, num caixão, contemplado e lembrado e chorado pela última vez.
Não me levantarei da cama amanhã depois de Lhe pedir em surdina que dê um impulso maior ao balouço, que o empurre com força até que os pés me voem para fora do calor aterrado dos lençóis. Ninguém mais vai estar à minha espera, não terei de me disfarçar de desculpas, não voltarei a iludir ou desiludir ninguém. Não voltarei a morrer no corpo do único homem que me abriu no corpo a passagem secreta para a morte. Não voltarei à desilusão do renascimento. Sobretudo não voltarei a desiludir-te a ti, o descrente que me ensinou a crer melhor, o meu pequeno e velho Deus de algibeira, o meu amigo.
Despojada de corpo é-me mais fácil transformar-me no próprio balouço, na luz dançante de que ele é feito. Num murmúrio de vento peço-lhe que não me empurre tão depressa para esse lugar iluminado que é a Sua Carne, peço - Lhe que me deixe matar saudades desse mundo que deixei tão de repente. Matar saudades de ti. Ou matar-te, como fazem as crianças, para recomeçar uma outra história, no balouço quotidiano do teu sorriso.

Só o teu riso dura. Mostrei-te o mar.
Mostrei-to antes e depois de morreres. (Luís Filipe Castro Mendes)


Inês Pedrosa, Fazes-me falta