quinta-feira, 2 de junho de 2011


"Humano, demasiado humano" é o monumento de uma crise. Ele se chama um livro para espíritos livres: praticamente cada uma de suas sentenças exprimem uma vitória - com o mesmo, eu me livrei daquilo que-não-faz-parte-de-mim em minha natureza. Não faz parte de mim o idealismo: o título diz "onde vós vedes coisas ideais, eu vejo - coisas humanas, ah, coisas demasiado humanas!"

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Aurora - "Há tantas auroras que ainda não brilharam" - essa inscrição indiana está às portas deste livro. Onde o seu criador procura aquela nova manhã, aquele rubor delicado desconhecido até agora, com o qual um novo dia - ah, toda uma série, um mundo inteiro de novos dias - romperá? Em uma transvaloração de todos os valores, em um desprender-se de todos os valores morais, em um dizer-sim e um ter-confiança em tudo que até hoje foi proibido, desprezado, amaldiçoado. Esse livro afirmativo jorra sua luz, seu amor, sua ternura sobre coisas puramente ruins, ele volta a lhes devolver "a alma", a consciência limpa, o direito altivo e o privilégio à existência. A moral não é atacada, ela apenas não é mais considerada... Esse livro termina com um "Ou?" - ele é o único livro que termina com um "Ou"...

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A Gaia Ciência - quase em todas as suas frases a profundez e a exuberância andam de mãos dadas. Um poema em agradecimento ao mês de janeiro, o mais maravilhoso que já vivi - o livro inteiro é um presente seu - , revela à suficiência de que fundaras a "ciência" se fez gaia nesse livro:

Tu, que com o fogo da tua lança
divides o gelo de minha alma,
Fazendo-a buscar o mar, sem calma,
Em busca de sua maior esperança:
Sempre mais clara, e mais saudável, 
Liberta no dever mais amável
Ela preza o teu milagre,
Mais belo entre os janeiros!

[...]

O último poema, especialmente - "Ao Mistal" -, uma canção de dança exuberante, em que - peço a permissão! - danço muito além da moral, é um provençalismo perfeito...

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Assim falou Zaratustra - Um livro para todos e para ninguém.
A concepção fundamental da obra, o pensamento do eterno retorno, essa mais alta fórmula da afirmação que um dia pôde ser alcançada - é de agosto do ano de 1881. Ele está atirado sobre uma folha com a assinatura: "6.000 pés além do homem e do tempo". Naquele dia eu atravessei  as florestas junto ao lago de Silvaplana; próximo a um bloco poderoso, que se elevava para o alto em forma de pirâmide, não muito longe de Surlei. Foi então que me veio esse pensamento...
[...]
Pela manhã eu subia em direção ao sul, pela magnífíca estrada que leva a Zoagli e dali ao alto, passando por pinheiros e olhando o mar do alto, a distância; à tarde, por tantas vezes quantas a saúde me permitiu, eu circundava a enseada inteira, de Santa Marguerita até chegar em Porto Fino. Esse lugar e essa paisagem tornaram-se ainda mais caros ao meu coração pelo grande amor que o inesquecível imperador alemão Frederico III sentia por eles; no outono de 1886 voltei a estar por acaso nessa encosta quando ele visitou pela última vez esse pequeno mundo de venturas, esquecido no tempo... Por esses dois caminhos - o da manhã e o da tarde - todo o primeiro Zaratustra veio até mim, e sobretudo o próprio Zaratustra, na condição de tipo: mais corretamente, ele caiu sobre mim...


Friedrich Nietzsche, Ecce Homo