quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Martha Medeiros, Divã


Vivo cercada de pessoas, mas nunca somos nós mesmos na presença de testemunhas.
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Hospedo em mim uma natureza contestadora que onde quer que eu vá ela está comigo, só que sou bem-educada, não compro briga à toa.
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Sou tantas que mal consigo me distinguir. Sou estrategista, batalhadora, porém traída pela comoção. Num piscar de olhos fico terna, delicada. Acho que sou promíscua, Dr. Lopes. São muitas mulheres numa só, e alguns homens também. Prepare-se para uma terapia de grupo.
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Por um lado, não me sinto como as outras pessoas e, por outro, sou exatamente como elas. Me inquieta essa aparença, é como se todos os meus conflitos internos passassem a ser publicados diariamente nas revistas femininas, e eu rejeito essa banalização, não quero meus conflitos expostos, quero mantê-los lá no fundo, eles não precisam emergir, sou eu que preciso mergulhar e, se preciso for, ficar um pouco lá embaixo, me familiarizando com a parte de mim que não respira, não ventila. Vim para saber se tenho fôlego para tanto.
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O que eu queria que você soubesse, por hoje, é que pode ser que eu esteja aqui apenas para me dar o direito de me introverter como não soube fazer aos oito anos, que eu esteja aqui para me oferecer generosamente para a tristeza, para a sensação de desamparo que evitei a vida toda de forma tão arrogante. Eu não sei chorar, por exemplo.
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A gente casou no primeiro dia em que nos vimos, pulamos a parte do reconhecimento, foi desde o início um salto sem rede. Estávamos predestinados, sabíamos disso, antes mesmo de tocarmos um no outro, Mesmo quando houve brigas e implicâncias, elas faziam parte do querer-se. Não forjamos isso, aconteceu, e não se deve esnobar um presente do destino. Casamos porque já estávamos casados e não tinha cabimento fingir-se de solteiros.
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Gustavo e eu trocamos alianças. Gustavo e eu dançamos a valsa. Gustavo e eu cortamos o bolo. Gustavo e eu fizemos tudo o que todos os noivos fazem, cumprimos o ritual até o fim. Quando chegamos ao hotel e ele fechou a porta do quarto, a gente soube que o nosso casamento não seria igual aos outros. Ele não disse enfim sós. Disse enfim juntos.
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O cara não pedia licença, ia entrando com língua e dedos : o resto eu continha com o que sobrava de juízo. Sofria e gozava, sofria e adorava, sofria e queria mais.
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Somos todos virgens, Lopes. Virgens antes do primeiro beijo, antes do primeiro dia em que andamos de táxi sozinhos, antes do primeiro emprego. Quem morre sem nunca ter ido a Veneza, sem nunca ter tido um filho, sem nunca ter amado, morre virgem igual, mesmo tendo transado com a cidade inteira. Somos sempre virgens de alguma coisa que ainda não nos aconteceu.
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Eu adoraria ter sido esposa de César por uma noite, aquela noite, se é que esposas sentam no colo do marido dentro de um carro apertado que elas não conseguem lembrar a marca. Não, esposas não fazem isso, senão não seriam tão mal-humoradas.


Martha Medeiros, Divã