quarta-feira, 13 de outubro de 2010
Gabriel García Márquez, Memória de minhas putas tristes
No ano de meus noventa anos quis me dar de presente uma noite de amor louco com uma adolescente virgem. Lembrei de Rosa Cabarcas, a dona de uma casa clandestina que costumava avisar aos seus bons clientes quando tinha alguma novidade disponível. Nunca sucumbi a essa nem a nenhuma de suas muitas tentações obscenas, mas ela não acreditava na pureza de meus princípios. Também a moral é uma questão de tempo, dizia com um sorriso maligno, você vai ver. Era um pouco mais nova que eu, e não sabia dela fazia tantos anos que podia muito bem estar morta. Mas no primeiro toque reconheci a voz no telefone e disparei sem preâmbulos:
- É hoje.
[...]
No dia de meus noventa anos havia acordado, como sempre, às cinco da manhã. Por ser sexta-feira, meu compromisso único era escrever a crônica que é publicada aos domingos no El Diário de La Paz. Os sintomas do amanhecer tinham sido perfeitos para não ser feliz: me doíam os ossos desde a madrugada, meu rabo ardia, e havia trovões de tormenta depois de três meses de seca. Tomei banho enquanto passava o café, bebi uma caneca adoçada com mel de abelhas e acompanhada por duas broas de farinha de mandioca, e vesti o macacão de brim de ficar em casa.
O tema da crônica daquele dia, é claro, eram os meus noventa anos. Nunca pensei na idade como se pensa numa goteira no teto que indica a quantidade de vida que vai nos restando. Era muito menino quando ouvi dizer que se uma pessoa morre os piolhos incubados no couro cabeludo escapam apavorados pelos travesseiros, para vergonha da família. Isso me impressionou tanto que tosei o coco para ir à escola, e até hoje lavo os escassos fiapos que me restam com sabão medicinal de cinza e ervas milagrosas. Quer dizer, me digo agora, que desde muito menino tive mais bem formado o sentido do pudor social que o da morte.
Fazia meses que tinha previsto que minha crônica de aniversário não seria o mesmo e martelado lamento pelos anos idos, mas o contrário: uma glorificação da velhice. Comecei por me perguntar quando tomei consciência de ser velho, e acho que foi pouco antes daquele dia. Aos quarenta e dois havia acudido ao médico por causa de uma dor nas costas que me estorvava para respirar. Ele não deu importância. É uma dor natural na sua idade, falou.
- Então – disse eu -, o que não é natural é a minha idade.
O médico me deu um sorriso de lástima. Vejo que o senhor é um filósofo,disse ele. Foi a primeira vez que pensei na minha idade em termos de velhice, mas não tardei a esquecer o assunto. E me acostumei a despertar cada dia com uma dor diferente que ia mudando de lugar e forma, à medida que passavam os anos. Ás vezes parecia ser uma garrotada da morte e no dia seguinte se esfumava. Nessa época ouvi dizer que o primeiro sintoma da velhice é quando a gente começa a se parecer com o próprio pai. Devo estar condenado à juventude eterna, pensei então, porque meu perfil eqüino não se parecerá jamais ao caribenho cru que era meu pai, nem a o romano imperial de minha mãe. A verdade é que as primeiras mudanças são tão lentas que mal se notam, e a gente continua se vendo por dentro como sempre foi, mas de fora os outros reparam.
Na quinta década havia começado a imaginar o que era velhice quando notei os primeiros ocos da memória. Revirava a casa buscando meus óculos até descobrir que os estava usando, ou entrava com eles no chuveiro, ou punha os de leitura sem tirar os de longe. Um dia tomei duas vezes o café da manhã porque me esqueci da primeira , e aprendi a reconhecer o alarme de meus amigos quando não se atreviam a me lembrar que estava contando a mesma história que havia contado na semana anterior. Naquele tempo tinha na memória uma lista de rostos conhecidos e outra com os nomes de cada um, mas no momento de cumprimentar não conseguia que as caras coincidissem com os nomes.
Minha idade sexual não me preocupou nunca, porque meus poderes não dependiam tanto de mim como delas, e quando querem elas sabem o como e o porquê. Hoje em dia dou risadas dos rapazes de oitenta que consultam o médico, assustados por causa desses sobressaltos, sem saber que nos noventa são piores, mas já não importam: são os riscos de estar vivo. Em compensação, é um triunfo da vida que a memória dos velhos se perca para as coisas que não são essenciais, mas raras vezes falhe para as que de verdade nos interessam. Cícero ilustrou isso de uma penada: não há ancião que esqueça onde escondeu seu tesouro.
Com essas reflexões,e tantas outras, havia terminado o primeiro rascunho da crônica quando o sol de agosto explodiu entre as amendoeiras do parque e o barco fluvial do correio, atrasado uma semana por causa da seca, entrou bramando pelo canal do porto. Pensei: Aí estão chegando os meus noventa anos. Jamais saberei por que, nem pretendo, mas foi ao conjuro daquela evocação arrasadora que decidi telefonar para Rosa Cabarcas pedindo ajuda para honrar meu aniversário com uma noite libertina. Fazia anos que estava na santa paz com meu corpo, dedicado à releitura diária dos meus clássicos e a meus programas privados de música culta, mas o desejo daquele dia foi tão urgente que me pareceu um recado de Deus. Depois do telefonema não consegui continuar escrevendo. Pendurei a rede num canto da biblioteca onde o sol não bate pela manhã, e me estendi com o peito oprimido pela ansiedade da espera.
Gabriel García Márquez, Memória de minhas putas tristes