A escritora Hilda Hilst está tendo sua obra reeditada [...], e o primeiro livro a ser relançado foi A obscena senhora D. No texto de apresentação, o organizador das reedições explica por que considerou esse o livro certo para iniciar as publicações: "É uma pancada justa, certeira, para apresentá-la sem meias medidas aos leitores potenciais, capazes dela".
Capazes dela. Capazes de um texto que causa desconforto e desconcerto. Capazes de um texto que execra o bom-mocismo. Capazes de absorver uma literatura em nenhum aspecto fácil. Os capazes de Hilda Hilst são capazes de Anaïs Nin, que são capazes de Rimbaud, que são capazes de absorver o delírio, a inquietação e a profundidade de nossas incertezas, portanto incapazes de um Sidney Sheldon.
Não é para falar de livros, esta crônica. É para falar de capacidade. Do quanto somos ou não somos capazes de enfrentar nossas limitações, capazes de noites em claro, capazes de questionar nossa própria sanidade. Do quanto somos incapazes para fórmulas prontas, incapazes de concordar cegamente com o que parece fazer sentido, incapazes de dizer amém.
Do que você é capaz?
Sou capaz de quase tudo, talvez até de matar e morrer, se a dor for insuportável. Sou capaz para o ilegal, o imoral e o insano, só não me sinto capaz para o injusto. Sou capaz de coisas que jamais farei, como me atirar de para-quedas de um avião, beber óleo de fígado de bacalhau e injetar silicone nos lábios, apenas nunca farei porque não há o que me motive.
Sou capaz para o segredo, sou capaz para o inferno, sou capaz para o silêncio, sou capaz para o irrecuperável, sou capaz para o fracasso, sou capaz para o medo, sou capaz para o bizarro. Minha incapacidade é para a frescura, para a fofoca, para a vaidade, para a seriedade que conferem ao que é irrelevante, e quase tudo é irrelevante, quase tudo que está à vista.
Sou capaz para o que não conheço e torno-me quase incapaz para o que conheço bem demais. Sou pouco capaz para a matemática, para a física, para a culinária, para a religião. Talvez seja capaz para a mediunidade, mas nunca tentei. Sou capaz para a loucura, mas costumo frear a tempo. E, quando preciso de solidão, sou capaz de me declarar inábil para tudo o mais, na esperança secreta de ser deixada em paz.