sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Johann Wolfgang Goethe, Werther (2)

O criado levou as pistolas a Werther, que as recebeu com arrebatamento quando se inteirou de que tinha sido Cartola que as entregara. Serviu-se de pão e vinho, disse ao criado que fosse jantar, e pôs-se a escrever:

Elas passaram pelas suas mãos, você as limpou! Beijei-as mil vezes: Você tocou-as. É você, anjo do céu, que favorece meu desígnio! Você mesma Cartola, fornece o instrumento que vai consumá-lo! Desejei receber a morte de suas mãos; é de você que a recebo hoje! Interroguei o meu criado e ele contou-me que você tremia ao entregar-lhe as pistolas, e não me enviou um adeus!... Ai de mim, ai de mim, nem um adeus!... Ter-me-ia fechado o coração por causa deste instante que me liga a você para sempre? Ó Carlota, milhares de anos não bastariam para apagar a impressão de tudo isso, e, sinto-o, você não pode odiar aquele que arde assim por sua causa!

Depois do jantar, ele ordenou ao criado que acabasse de fazer as malas, rasgou uma porção de papéis e saiu para pagar algumas pequenas dívidas. Retornou à casa, saiu de novo, apesar da chuva, dirigindo-se ao jardim do conde; depois, pôs-se a errar pelo campo. Ao cair da noite, voltou para casa e escreveu isto:

Pela última vez, Wilhelm, vi os campos, os bosques e o céu. Adeus a você também!... Querida mãe, perdoa-me! Console-a, Wilhelm! Que Deus vos abençoe! Todos os meus negócios estão em ordem. Adeus! Nós nos tornaremos a ver e seremos mais felizes!
Recompensei-o mal, Alberto, mas você me perdoará. Perturbei a paz do seu lar, lancei entre vocês a desconfiança. Adeus! Quero pôr um termo a tudo isto. Oh! Se vocês puderem ser felizes por causa da minha Morte! Alberto, Alberto, faça feliz o anjo que tem a seu lado! E que assim a graça de Deus baixe sobre você!

Durante a noite, remexeu ainda por muito tempo os seus papéis, dos quais rasgou uma porção, lançando-os ao fogo. Fez alguns pacotes e endereçou-os a Wilhelm. Eram pequenos ensaios e pensamentos soltos; muitos desses trabalhos me foram mostrados. Depois das 10 horas, tendo ordenado que lançassem mais lenha ao fogo, pediu uma garrafa de vinho e mandou dormir o criado, cujo quarto, bem como o das demais pessoas da casa, era muito distante do seu. O criado deitou-se de roupa e tudo, para erguer-se na manhã seguinte muito cedo, pois o amo lhe havia dito que os cavalos da posta estariam em frente da casa antes das 6 horas.

Depois das 11 horas.

Em torno de mim reina a tranquilidade, e minha alma está tão calma! Agradeço-vos, ó Deus, por me concederes em meus últimos momentos, este calor e esta força!
Aproximo-me da janela, ó minha amiga, e vejo ainda, através das nuvens que o vento tempestuoso, ao longe, dispersa, brilhar aqui e além as estrelas do céu eterno. Não, vós não tombareis! O eterno vos retém em seu seio, e a mim também! Vejo as rodas do carro, a mais querida das constelações. Quando ontem a deixei, quando saí de sua casa, eu vi diante de mim essa constelação. Com que inebriamento a tenho tantas vezes contemplado! Quantas vezes, erguendo as mãos ao céu, tomei-a como sinal, como monumento sagrado da felicidade que então fruía! E, no entanto, ainda... Ó Cartola, que é que não me faz pensar em você? Você não está em tudo quanto me cerca? E não tenho eu, como uma criança, furtado avidamente mil ninharias que você tocou, ó minha santa?
Querida silhueta! A você  a lego, pedindo-lhe que a venere. Quando entrava, ou quando saía, imprimia nela milhares de beijos; mil vezes lhe disse adeus.
Escrevi um bilhete ao seu pai, pedindo-lhe que proteja meu corpo. No cemitério, bem ao fundo, no canto que dá para o campo, há duas tílias: é lá que desejo repousar. Ele poderá fazer isso, há de fazê-lo pelo seu amigo. Peça-lhe também! Não exigirei dos piedosos cristãos que deixem depositar seus corpos ao lado de um infeliz! Ah! Eu queria que me enterrassem à beira da estrada, ou no vale solitário! Ao passar, o sacrificador e o levita haveriam de persignar-se diante da pedra que marcaria o meu túmulo e o Samaritano me concederia uma lágrima.
Veja, Cartola, que não tremo ao pegar a fria e terrível taça por onde quero beber e a embriaguez da morte! É você quem ma apresenta e eu não hesito um só momento. É assim que se consumam todos os votos, todas as esperanças da minha vida, todas! Quero bater, gelado e rígido, à porta de bronze da morte!
Se eu tivesse alcançado a ventura de morrer, de sacrificar-me por você. Carlota! Eu morreria corajosamente, e com que alegria, se pudesse restituir-lhe o repouso e a felicidade! Mas, ai de mim, a muito poucas e nobres criaturas é dado derramar o sangue pelos seus e, com a morte, iluminar uma vida nova e centuplicada para aqueles que amam!
É com esta roupa, Carlota, que quero ser enterrado; você a tocou, você a santificou; também isto pedi a seu pai. Minha alma flutuará sobre o caixão. Que ninguém remexa em meus bolsos. O nó cor-de-rosa que você trazia no corpete, quando a vi pela primeira vez em meio das suas crianças... Oh! Beije-as mil vezes por mim e conte-lhes a história do seu desgraçado amigo! Queridas crianças! Vejo-as alvoraçadas em torno de mim! Ah! como me prendi a este nó cor-de-rosa, como, desde o primeiro momento, não mais pude deixá-lo... Irá comigo para o túmulo; você mo deu no dia do meu aniversário natalício. Com que sofreguidão o recebi! Não pensava que tudo me havia de conduzir até aqui!... Carlota, Carlota! Adeus, adeus!

Um vizinho viu o clarão da pólvora e ouviu o estampido, mas, como tudo voltou ao completo silêncio, não se inquietou mais.
Às 6 horas da manhã, ao entrar com uma lâmpada, o criado encontrou o amo estendido no solo. Vendo as pistolas e o sangue, chamou-o, sacudindo-o. Nenhuma resposta. Werther estertorava. Correu ao médico, foi à casa de Alberto. Carlota ouviu bater e sentiu um arrepio por todo o corpo. Despertou o marido e ambos saltaram da cama. O criado, gritando e gaguejando, deu-lhes a notícia. Carlota caiu sem sentido aos pés de Alberto.
Quando o médico chegou, o desgraçado jazia no assoalho. Não havia mais esperanças de salvá-lo, pois, conquanto o pulso ainda batesse, todos os membros estavam paralisados. Ele havia metido uma bala na cabeça, acima do olho direito, e os miolos saltaram para fora. Fazendo uma tentativa, deram-lhe uma sangria no braço; o sangue correu e ele continuou  a respirar.
A mancha de sangue que se via no espaldar da poltrona provou que Werther estava sentado à sua secretária quando disparou a arma; que em seguida tombara e, debatendo-se na convulsão, rolara ao lado da mesma poltrona. Estirado em decúbito dorsal, perto da janela, não teve mais forças para fazer qualquer movimento. Estava completamente vestido e calçado, envergando um fraque azul e um colete amarelo.
A princípio a casa, depois a vizinhança, por último a vila inteira foi sacudida pela emoção. Alberto apareceu. Tinham posto Werther sobre o leito com o rosto amarrado por um lenço. A sua fisionomia era já a de um morto. Não fazia o menor movimento. Os pulmões ainda arfavam de um modo horroroso, ora fracamente, ora com mais força. Esperava-se o fim.
Ele bebera apenas um copo de vinho. O drama de Emilia Galotti estava aberto sobre a estante.
Dispensem-me de descrever a consternação  de Alberto e o desespero de Carlota.
O velho bailio acudiu, logo que soube da notícia, e beijou o morimbundo, derramando lágrimas ardentes. Seus dois filhos chegaram a pé, logo depois do pai, e, abandonando-se à dor mais violenta, caíram junto ao leito, beijando as mãos e a boca de Werther. O mais velho dos dois, por quem Werther sempre demonstrou particular estima, colou-se-lhe aos lábios até que o infeliz soltasse o último suspiro, tendo sido preciso arrancá-lo dali à força. Werther expirou ao meio-dia. A presença do bailio e as medidas por ele tomadas evitaram que a multidão se atropelasse em frente da casa. À noite, cerca das 11 horas, o bailio fê-lo enterrar no local previamente escolhido pelo desgraçado. O velho e os filhos acompanharam o cortejo. Alberto não se sentiu capaz de fazê-lo. Temia-se pela vida de Carlota. O corpo foi conduzido por trabalhadores. Nenhum padre o acompanhou.

Johann Wolfgang Goethe, Werther