quarta-feira, 18 de agosto de 2010

George Orwell, 1984

Winston escrevia no diário:

Faz três anos. Era uma noite escura, uma ruela sem luz, perto duma grande estação ferroviária. Ela estava parada perto duma porta, sob um lampião que mal iluminava o lugar. Tinha rosto jovem, com pintura espessa. Foi realmente a pintura que me chamou a atenção, pois era branca como uma máscara, e os lábios muito vermelhos, brilhantes. As mulheres do Partido nunca se pintam. Não havia ninguém mais na rua, nem teletela. Ela disse dois dólares e eu...

 Por um minuto foi difícil continuar. Fechou os olhos e apertou com os dedos, tentando afastar a visão que insistia em voltar. Tinha uma tentação quase indomável de berrar um bando de palavras indecentes a pleno pulmão. Ou bater a cabeça na parede, dar um pontapé na mesa ou atirar o tinteiro pela janela - fazer algo violento, doloroso ou ruidoso que pudesse apagar a lembrança que o atormentava.
Nosso pior inimigo, refletiu, é o sistema nervoso. A qualquer momento a tensão que há dentro da gente pode-se traduzir num sintoma visível. Pensou num homem com quem cruzara na rua, havia algumas semanas: um sujeito de aspecto comum, membro do Partido, de trinta e cinco ou quarenta anos, alto e magro, levando uma pasta. Estavam a apenas alguns metros de distância quando o lado esquerdo do rosto do homem se contorceu subitamente num espasmo. Tornou a acontecer quando cruzaram: era apenas um tremor, um arrepio, rápido como o clique do obturador duma máquina fotográfica, mas evidentemente habitual. Lembrou-se de ter pensado na ocasião: esse pobre diabo está danado. O mais aterrorizante era o ato talvez ser inconsciente. O pior de todos os perigos era falar dormindo. Não havia meio de se proteger contra aquilo.
Ele suspirou e continuou escrevendo:

Entrei com ela pela porta e atravessamos um quintal, chegando à cozinha dum porão. Contra a parede havia uma cama, e sobre a mesa uma lâmpada, muito fraquinha. Ela...

 Rilhou os dentes. Gostaria de cuspir. Ao mesmo tempo que na mulher da cozinha do porão pensou em Katharine, sua esposa. Winston era casado - ou fora casado; com certeza ainda era casado, pois, tanto quanto sabia, a esposa não morrera. Parecera inalar de novo o odor morto da cozinha do porão, um  cheiro misto de percevejos, roupa suja e perfume ordinário, e no entanto atraente, porque nenhuma mulher do Partido usava perfume, nem se podia imaginar que se fizesse tal coisa. Só os proles usavam perfumes. Para ele, aquele cheiro trazia à mente o ato sexual.
A escapada com aquela mulher fora a primeira, em dois anos ou mais. Andar com prostitutas era proibido, naturalmente, mas era dessas regras que às vezes os militantes  tinham coragem de quebrar. Era perigoso, mas não era caso de vida ou morte. Ser apanhado com uma marafona poderia significar cinco anos num acampamento de trabalhos forçados; apenas isso, se não houvesse outra infração. E era fácil, contanto que se evitasse ser surpreendido no ato. Os bairros pobres pululavam de mulheres prontas a se entregarem. Algumas podiam ser compradas até por uma garrafa de gim, que os proles não tinham direito de beber. Tacitamente o partido até se inclinava a incentivar a prostituição, para dar saída a instintos que não podiam ser totalmente suprimidos. Mera luxúria não tinha maior importância, contanto que fosse furtiva e sem alegria, e só envolvesse mulheres de uma classe submersa e desprezada. O crime imperdoável era a promiscuidade entre membros do Partido. Mas - embora esse crime fosse variavelmente confessado pelos acusados, nos grandes expurgos - era difícil imaginar que acontecesse.
O objetivo do partido não era simplesmente impedir que homens e mulheres criassem lealdades difíceis de controlar. Seu propósito real, não declarado, era roubar todo o prazer ao ato sexual. Não tanto o amor como o erotismo era o inimigo, tanto dentro como fora do casamento. Todos os casamentos entre membros do Partido tinham que ser aprovados por um comitê nomeado para esse fim e- embora o princípio jamais fosse claramente declarado - a permissão era sempre recusada se o casal desse a impressão de haver qualquer atração física. O único fim reconhecido do casamento era procriar filhos para o serviço do Partido. A cópula devia ser considerada uma pequena operação ligeiramente repugnante, como um clister. Isto tampouco era dito em voz alta, mas de modo indireto era ensinado a cada membro do Partido, desde a infância. Havia até organizações como a Liga Juvenil Anti-Sexo, que advogava completo celibato para ambos os sexos. Todas as crianças deveriam nascer por inseminação artificial (insemart) e educadas em instituições públicas. Isto, Winston sabia, não era para se levar de todo a sério, mas de certo modo se encaixava na ideologia geral do Partido. O Partido estava procurando matar o instinto sexual ou, se não fosse possível matá-lo, torcê-lo e torná-lo indecente. Ele não sabia o porquê dessa conduta, mas assim era, e lhe parecia natural que assim fosse. E, no que se referia às mulheres, os esforços do Partido haviam logrado considerável êxito.
Ele tornou a pensar em Katharine. [...]

Winston suspirou alto. Tornou a apanhar a caneta e escreveu:

Ela atirou-se na cama e, imediatamente, sem qualquer preliminar, da maneira mais grosseira e horrível que se pode imaginar, levantei-lhe a saia. Eu...

Tornou a ver-se, à luz débil do abajur as narinas cheias do odor do percevejo e perfume barato, e no coração uma sensação de derrota e ressentimento que, naquele mesmo momento, vinha de cambulhada com a recordação do corpo branco de Katharine, congelado para sempre pelo poder hipnótico do Partido. Por que teria de ser sempre assim? Porque não poderia ter uma mulher própria em vez de ter que recorrer a aventuras sórdidas , com intervalo de vários anos? Um amor genuíno, porém, era quase difícil de imaginar. Todas as mulheres do Partido eram iguais. Nelas a castidade era tão profunda quanto a lealdade ao Partido. Por meio de cuidadoso condicionamento, em tenra idade, por meio de jogos e água fria, pelo lixo que lhes impingiam na escola, nos Espiões e na Liga Juvenil, por meio de conferências, paradas, canções, lemas e música marcial, tinham expulso o sentimento natural. A razão dizia-lhe que devia haver exceções, mas no fundo do coração não acreditava nisso. Eram todas inexpugnáveis, como desejava o Partido. E o que ele queria, mais do que ser amado, era deitar abaixo aquela muralha de virtudes, mesmo que fosse apenas uma vez na vida inteira. Executado com êxito, o ato sexual era rebelião. O desejo era crimidéia. Despertar o instinto de Katharine, se o tivesse conseguido, seria como que seduzi-la, embora fosse sua esposa.
Mas era preciso escrever o resto da história. E ele escreveu:

Levantei o abajur. Quando a vi sob a luz...

Depois da treva, a luzinha fraca do candeeiro de querosene lhe parecera muito clara. Pela primeira vez, pôde ver a mulher direito. Dera um passo para ela e se detivera, cheio de luxúria e terror. Tinha dolorosa consciência do risco que corria entrando ali. Era perfeitamente possível que as patrulhas o apanhassem na saída: podiam até estar esperando na porta, naquele momento. E se ele fosse embora sem realizar o que fora fazer!
Era preciso escrevê-lo, era preciso confessá-lo. O que vira de repente, sob a luz da lâmpada, era que se tratava duma velha. A pintura do rosto era tão grossa que dava a impressão de que ia rachar como uma máscara de cartão. Havia fios brancos no cabelo; mas o detalhe verdadeiramente revoltante era a boca, que se entreabria, revelando nada mais que uma caverna negra. A mulher não tinha dente algum.
Ele escreveu com pressa, aos garranchos:

Quando a vi sob a luz, percebi que se tratava duma velha, de uns cinquenta anos pelo menos. Mas fui em frente e fiz o que fora fazer.

Tornou a apertar as pálpebras com os dedos. Escreveu tudo, por fim, mas não fazia diferença. A terapia não dera resultado.Continuava, mais forte que nunca, o desejo de berrar obcenidades a plenos pulmões.



George Orwell, 1984