sábado, 7 de agosto de 2010

Emile Zola, A besta humana

- Recordo-me ... quando era garota e brincava com as amigas nas aléas, se ele aparecia, todas se escondiam; até sua própria filha, Berta, que tremia incessantemente com medo de cometer alguma falha. Eu, não;  esperava-o tranqüila. Ele passava, e vendo-me sorridente, de nariz para o ar, dava-me uma palmadinha na face... Mais tarde, aos dezesseis anos, quando Berta queria algum favor dele era sempre a mim que encarregava de o pedir. Eu falava, não baixava a vista, e sentia que os olhos dele me penetravam. Mas eu ria-me disso, tinha tanto a certeza de que ele me havia de conceder tudo quanto eu quisesse!... Ah! Sim, lembro-me, lembro-me! Não há lá na quinta uma árvore do parque, um corredor, um quarto do palácio que eu não seja capaz de evocar de olhos fechados.
Calou-se, as pálpebres unidas; e no seu rosto, quente e entumecido, parecia passar o sobressalto daquelas coisas de outros tempos, as coisas que ela não dizia. Por um instante permaneceu assim, com um leve bater de lábios, como um tique involuntário, que lhe repuxava dolorosamente um canto da boca.
- Ele foi sem dúvida muito bom pra ti, retrucou Roubaud, acendendo o cachimbo. Não só te mandou educar como u’a moça da sociedade, mas administrou com muito cuidado o teu pequeno dote, e arredondou-te a soma por ocasião do nosso casamento... Sem contar que deve deixar-te alguma coisa, disse-o ele diante de mim.
- Bem sei, murmurou Severina, aquela casa da Croix-de-Maufras, aquela propriedade que o comboio cortou. Íamos lá às vezes passar oito dias. Mas eu não conto com isso, os Lachesnaye hão de trabalhar para que ele não me deixe nada. E depois nada, nada!
Ela pronunciara estas últimas palavras com uma voz tão viva, que ele se admirou e retirou o cachimbo da boca, fitando-a com os seus olhos muito redondos.
- Estás doida! Dizem que o presidente tem milhões, que mal haveria em que ele contemplasse a afilhada no testamento? Não era caso para surpreender e isso resolveria muito bem os nossos negócios.
Depois uma idéia que lhe passou pelo cérebro fê-lo rir-se.
- Nunca te passou pela cabeça que podes ser filha dele, ... Não sei se sabes que do presidente, apesar do seu ar frio, se contam algumas de estarrecer.... Parece mesmo que no tempo em que a mulher era viva, não havia criada que lhe escapasse... Enfim, um pândego a quem, hoje ainda, as mulheres não metem medo... Meu Deus, e se tu fosses filha dele?
Severina levantou-se , violenta, o rosto inflamado, como vacilar assustado do seu olhar azul, sob a massa pesada dos cabelos pretos.
- Filha dele, filha dele!... Não quero que tenhas gracejos desses, ouves? Posso lá ser filha dele! Eu pareço-me com ele porventura? Bem, basta, falemos noutra coisa! Não quero ir a Doinville porque não quero, porque prefiro voltar contigo para o Havre.
Ele abanou a cabeça, tranqüilizou-a com o gesto. Bem, bem! Desde o momento em que isto lhe mexia com os nervos... Ele sorria, nunca a vira tão nervosa. Fôra o vinho branco , decerto. Desejoso de fazer-se perdoar, pegou outra vez na navalha, extasiando-se diante dela, limpando-a cuidadosamente; e para mostrar que cortava como uma navalha de barba, pôs-se a aparar as unhas com ela.
- Já quarto e um quarto, murmurou, Severina de pé diante do relógio. Tenho ainda umas voltas a dar... É preciso não esquecer o comboio.
Mas, como para acalmar-se melhor, antes de por um pouco de ordem no quarto, voltou a encostar-se à janela. Ele então, pondo de parte a navalha, ponde de parte o cachimbo, aproximou-se dela, tomou-a por detrás , entre os braços, docemente. E tinha-a assim enlaçada, pousara o queixo sobre o ombro dela, e encostava-lhe a cabeça contra a sua, Nem um nem outra se mexia, olhavam.
Lá embaixo, as pequenas máquinas de manobras continuavam a ir e a vir sem descanso; e.mal se ouviam ativar, como donas-de-casa vivas e prudentes, as rodas não fazendo ruído, os silvos discretos. Uma delas passou, desapareceu sob a ponte da Europa, levando para o depósito os carros de um comboio de Trouville, que se estava desmembrando. E, lá no fundo, além da ponte, passou por uma máquina que vinha sozinha do depósito, como passeante solitária, com os seus cobres e os seus aços luzidios, fresca e pronta para a viagem.

Emile Zola, A besta humana