Quando vejo uma cara nova, algo dentro de mim faz soar o alarme. "Devagar. Perigo!" Mesmo quando a simpatia é intensa, tenho cautela. Sabe que em minha pequena aldeia, em uma ação de represália, um oficial alemão pediu delicadamente a uma velhinha para fazer a gentileza de escolher entre os seus dois filhos o que seria fuzilado? Escolher, já imaginou? Aquele? Não, este aqui. E vê-lo partir. Não insistamos nisso, mas creia-me, caro senhor, todas as surpresas são possíveis. Conheci um coração puro que recusava a desconfiança. Era pacifista, libertário e amava com um único amor abrangente toda a humanidade e os animais. Sim, uma alma de elite, com toda a certeza. Pois bem, durante as últimas guerras religiosas, na Europa, retirou-se para o campo. Escreveu na entrada de sua casa: "De onde quer que você venha, entre e seja bem-vindo." Quem, segundo o senhor, respondeu a este belo convite? Os milicianos, que entraram como se a casa fosse deles e o estriparam.
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Não compreende o que quero dizer? Confesso-lhe meu cansaço. Perco o fio de meus relatos, já não possuo aquela clareza de espírito à qual meus amigos se compraziam em prestar homenagem. Digo amigos, aliás, por princípio. Não tenho mais amigos, só tenho cúmplices. Em compensação, seu número aumentou, são o gênero humano. E, do gênero humano, o senhor é o primeiro. O que está presente é sempre o primeiro. Como sei que não tenho amigos? É muito simples: eu descobri isso no dia em que pensei em matar-me para lhes pregar uma boa peça, para puni-los, de certa forma. Mas punir quem? Alguns ficariam surpreendidos; ninguém se sentiria punido. Compreendi que não tinha amigos. Além disso, mesmo se os tivesse, não adiantaria nada.
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Se eu pudesse suicidar-me e ver em seguida a cara deles, então, sim, valeria a pena. Mas a terra é obscura, caro amigo, a madeira espessa, opaca a mortalha. Os olhos da alma, sim, sem dúvida, se há uma alma e se é que ela tem olhos! Mas aí está, não se tem certeza, nunca se tem certeza. Caso contrário, haveria uma saída, poderíamos, finalmente, fazer com que nos levassem a sério. Os homens só se convencem de nossas razões, de nossa sinceridade e da gravidade de nossos sofrimentos com a nossa morte. Enquanto estivermos vivos, nosso caso é duvidoso, só temos direito a seu ceticismo. Se houvesse, então, uma única certeza de podermos gozar o espetáculo, valeria a pena provar-lhes o que eles não querem crer e deixá-los assombrados. Mas uma pessoa se mata, e que importa se eles acreditam ou não? Não estamos presentes para colher os frutos de seu espanto e de sua contrição, aliás efêmera: assistir, enfim, segundo o sonho de cada homem, ao próprio funeral. Para deixar de ser duvidoso, é preciso, pura e simplesmente, deixar de ser.
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Bem sei que não se pode deixar de dominar ou de ser servido. Todo homem tem necessidade de escravos, como de ar puro. Mandar corresponde a respirar, não tem a mesma opinião? E até os mais desfavorecidos conseguem respirar. O último da escala social ainda tem o cônjuge ou o filho. Quando é solteiro, um cão. O essencial, em resumo, é uma pessoa poder zangar-se, sem que alguém tenha o direito de responder: “Não se responde ao pai”, conhece a fórmula? Em certo sentido, ela é singular. A quem se responderia neste mundo, senão a quem se ama? Por outro lado, ela é convincente. É preciso que alguém tenha a última palavra. Senão, a toda razão pode opor-se uma outra: nunca mais se acabaria. A força, pelo contrário, resolve tudo. Levou tempo, mas conseguimos compreender isso. Por exemplo, deve ter notado, a nossa velha Europa filosofa, enfim, da melhor maneira. Já não dizemos, como nos tempos ingênuos: “Eu penso assim. Quais são as suas objeções?”. Tornamo-nos lúcidos. Substituímos o diálogo pelo comunicado. “Esta é a verdade”, dizemos. “Podemos até discuti-la, isso não nos interessa. Mas, dentro de alguns anos, lá estará a polícia para lhes mostrar quem tem razão".
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Cá entre nós, a servidão, de preferência sorridente, é, portanto, inevitável. Mas não devemos reconhecer isso. Quem não pode deixar de ter escravos, não fará melhor chamando-os de homens livres? Por princípio, em primeiro lugar, e depois para não desesperá-los. Esta compensação certamente lhes é devida, não acha? Desse modo, eles continuarão a sorrir e nós ficaremos com a consciência tranquila. Sem isso, seríamos forçados a mudar de opinião, ficaríamos loucos de dor, ou até modestos, deve-se temer tudo. Por isso, nada de insígnias, e isto é escandaloso. Aliás, se todo mundo se sentasse à mesa e ostentasse sua verdadeira profissão, sua identidade, já nem saberíamos para que lado haveríamos de nos voltar! Imagine os cartões de visita: Dupont, filósofo apavorado ou proprietário cristão ou humanista adúltero, na verdade, nós temos a escolha. Mas seria o inferno! Sim, o inferno deve ser assim: ruas com insígnias e nenhuma possibilidade de explicação. Fica-se classificado de uma vez para sempre.
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Devo reconhecer humildemente, meu caro compatriota, que fui sempre um poço de vaidade. Eu, eu, eu, eis o refrão de minha preciosa vida, e que se ouvia em tudo quanto eu dizia. Só conseguia falar vangloriando-me, sobretudo quando o fazia com esta ruidosa discrição, cujo segredo eu possuía. É bem verdade que eu sempre vivi livre e poderoso. Simplesmente, sentia-me liberado em relação a todos pela excelente razão de que me considerava sem igual. Sempre me achei mais inteligente do que todo mundo, como já lhe disse, mas também mais sensível e mais hábil, atirador de elite, incomparável ao volante e ótimo amante. Mesmo nos setores em que era fácil verificar minha inferioridade, como o tênis, por exemplo, em que eu era apenas um parceiro razoável, era-me difícil não acreditar que, se tivesse tempo para treinar, superaria os melhores. Só reconhecia em mim superioridades, o que explicava minha benevolência e serenidade. Quando me ocupava dos outros, era por pura condescendência, em plena liberdade, e todo o mérito revertia em meu favor: eu subia um degrau no amor que dedicava a mim mesmo.
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Já notou que há pessoas cuja religião consiste em perdoar todas as ofensas, e que efetivamente as perdoam, mas nunca as esquecem? Eu não era feito de matéria que me permitisse perdoar as ofensas, mas acabava sempre por esquecê-las. E, se alguém se julgasse detestado por mim, custava a acreditar que estava sendo saudado com um largo sorriso. Segundo sua índole, admirava então minha grandeza de alma ou desprezava minha desfaçatez, sem pensar que minha razão era mais simples: eu havia esquecido até o seu nome. O mesmo defeito que me tornava indiferente ou ingrato fazia-me magnânimo.
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É preciso que se saiba, antes de tudo, que sempre tive êxito com as mulheres, e sem grande esforço. Não me refiro ao êxito em fazê-las felizes, tampouco em fazer-me feliz por intermédio delas. Não; ter êxito, simplesmente. Eu era bem-sucedido, mais ou menos quando queria. Achavam que eu tinha certo charme, imagine! Sabe o que é isto: um modo de ouvir sim como resposta, sem ter feito uma pergunta clara.
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Depois de certa idade, todo homem é responsável pelo seu rosto.
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Em cada caso, minha sensualidade, para só falar dela, era tão real que, mesmo por uma aventura de dez minutos, eu renegaria pai e mãe, mesmo se tivesse de lamentar isso amargamente. Que digo eu! Sobretudo por uma aventura de dez minutos, e mais ainda, se eu tivesse a certeza de que ela não teria futuro. Eu tinha princípios, é claro; por exemplo: a mulher dos amigos era sagrada. Simplesmente, eu deixava, com toda sinceridade, alguns dias antes, de ter amizade pelos maridos.
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Foi nesse momento que o pensamento da morte irrompeu em minha vida diária. Contava os anos que me separavam de meu fim. Buscava exemplos de homens de minha idade que já estivessem mortos. E me atormentava a ideia de que não teria tempo de realizar a minha tarefa. Que tarefa? Eu nem sabia.
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E então? Então, a única utilidade de Deus seria garantir a inocência, mas eu vejo a religião antes de tudo como uma grande empresa de lavanderia, o que, aliás, ela foi, por um breve tempo, precisamente durante três anos, e não se chamava religião. Desde então, falta sabão, andamos com o nariz sujo e nos assoamos mutuamente. Todos culpados, todos castigados, escarremo-nos, e pronto! Já para o desconforto! Basta ver quem escarra primeiro, eis tudo. Vou contar-lhes um grande segredo, meu caro. Não espere pelo Juízo Final. Ele se realiza todos os dias.
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É muito difícil distinguir o verdadeiro do falso no que conto. Confesso que tem razão. Eu mesmo... Olhe, uma pessoa de meu conhecimento dividia os seres em três categorias: os que preferem não ter nada a esconder a serem obrigados a mentir; os que preferem mentir a não ter nada a esconder; e, finalmente, os que amam ao mesmo tempo a mentira e o segredo. Deixo à escolha a classificação que melhor me convém.
Que importa, afinal? As mentiras não conduzem finalmente ao caminho da verdade? E minhas histórias, verdadeiras ou falsas, não tendem todas ao mesmo fim, não têm o mesmo sentido? Que importa, então, que sejam verdadeiras ou falsas se, em ambos os casos, são representativas do que fui e do que sou? Pode-se, às vezes, ver com mais clareza em quem mente do que em quem fala a verdade. A verdade, como a luz, cega. A mentira, ao contrário, é um belo crepúsculo, que valoriza cada objeto. Enfim, entenda como quiser.
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Ah! Meu caro, para quem está só, sem Deus e sem senhor, o peso dos dias é terrível. É preciso, portanto, escolher um senhor, já que Deus não está mais na moda. Esta palavra, aliás, não tem mais sentido; não merece que nos arrisquemos a chocar alguém. Olhe, nossos moralistas, tão sérios, amando o próximo e tudo, só os separa, em suma, do estado de cristão o fato de não pregarem nas igrejas. Que é que os impede, em sua opinião, de se converterem? O respeito, talvez, o respeito pelos homens, sim, o respeito humano. Não querem fazer escândalo, guardam para si seus sentimentos. Conheci, assim, um romancista ateu que rezava todas as noites. Isso nada impedia: o que ele descarregava sobre Deus em seus livros! Que pancadaria, como diria já nem sei quem! Um militante livre-pensador com quem me abri a esse respeito ergueu, aliás sem má intenção, os braços ao céu: "Não está me contando nenhuma novidade", suspirava esse apóstolo, "são todos assim': Segundo ele, oitenta por cento dos nossos escritores, se pudessem passar sem assinar, escreveriam e saudariam o nome de Deus. Mas eles assinam, na opinião dele, porque amam a si próprios, e não saúdam absolutamente nada, porque se detestam. Como não podem, do mesmo modo, deixar de julgar, desforram-se, então, na moral. Em suma, têm o satanismo virtuoso. É uma época estranha, na verdade! Que há de espantoso, portanto, no fato de os espíritos se perturbarem, e um de meus amigos, ateu enquanto irrepreensível marido, se converter ao tornar-se adúltero?
Ah! Os sonsos, atores, hipócritas, e ainda por cima tão comoventes! Acredite-me, todos o são, mesmo quando ateiam fogo no céu. Quer sejam ateus ou devotos, moscovitas ou bostonianos, são todos cristãos, de pai para filho. Mas, precisamente, já não há pai, já não há regra! Somos livres, é preciso, então, se virar, e como, sobretudo, eles não querem liberdade, nem suas sentenças, pedem para ser repreendidos, inventam regras terríveis, correm para fazer fogueiras em substituição às igrejas. E como eu lhe digo, são uns Savonarolas. Mas só crêem no pecado; na graça, nunca. Pensam nela, é bem verdade. A graça, eis o que eles querem, o sim, o abandono, a felicidade de ser e, quem sabe, porque eles também são sentimentais, o noivado, a moça em flor, o homem direito, a música. Eu, por exemplo, que não sou sentimental, quer saber com que sonhei? Com um amor total, de corpo e alma, dia e noite, em um abraço sem-fim, de prazer e de exaltação, durante cinco anos seguidos e, depois disso, a morte. Ai de mim!
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Minha ideia é, ao mesmo tempo, simples e fecunda. De que maneira empurrar todo mundo para um banho comum, a fim de termos sozinhos o direito de secar ao sol? Iria eu subir ao púlpito, como muitos de meus ilustres contemporâneos, e amaldiçoar a humanidade? Muito perigoso isso! Um dia, ou uma noite, o riso explode sem dar aviso. O julgamento que fazemos dos outros acaba por nos atingir em plena face, deixando algumas marcas. E então, perguntará? Pois bem, eis a brilhante ideia. Descobri que, enquanto esperamos a vinda dos senhores e de seus bastões, deveríamos, como Copérnico, inverter o raciocínio para triunfar. Já que não podíamos condenar os outros sem imediatamente nos julgarmos, seria preciso nos humilharmos para termos o direito de julgar os outros. Já que todo juiz acaba um dia por ser penitente, seria preciso enveredar em sentido inverso e exercer o ofício de penitente, para poder acabar como juiz. Está me acompanhando?
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Sou como eles, é certo, estamos no mesmo barco. Tenho, no entanto, uma superioridade, a de sabê-lo, o que me dá o direito de falar. O senhor vê a vantagem, disso tenho certeza. Quanto mais me acuso, mais tenho o direito de julgar os outros. Melhor, provoco as pessoas no sentido de julgarem a si próprias, o que me consola igualmente. Ah, meu caro, nós somos estranhas, miseráveis criaturas e, por pouco que nos debrucemos sobre as nossas vidas, não faltam ocasiões para nos espantarmos e nos escandalizarmos a nós mesmos. Experimente. Ouvirei, pode ficar certo, sua confissão com um grande sentimento de fraternidade.
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Não mudei de vida, continuo a amar-me e a me servir dos outros. Só que a confissão de minhas culpas permite-me recomeçar de maneira mais leve e gozar duplamente, primeiro minha natureza e, em seguida, um encantador arrependimento. Desde que encontrei minha solução, abandono-me a tudo, às mulheres, ao orgulho, ao tédio, ao ressentimento, e até à febre que, com deleite, sinto subir neste momento. Impero, enfim, mas para sempre. Encontrei novamente um cimo, no qual sou o único a escalar e de onde posso julgar todo mundo. Às vezes, raramente, quando a noite é verdadeiramente bela, ouço um riso longínquo e, mais uma vez, duvido. Mas, rapidamente, esmago todas as coisas, criaturas e criação, sob o peso de minha própria enfermidade, e eis-me restabelecido.
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A partir desta noite, aliás, vou recomeçar. Não consigo deixar de fazê-lo, nem privar-me desses momentos em que um deles desaba, com a ajuda do álcool, e bate no peito. Então eu cresço, meu caro, eu cresço, respiro livremente, estou sobre a montanha, a planície estende-se sob os meus olhos. Que embriaguez sentirmonos Deus-pai e distribuir atestados definitivos de má conduta e maus costumes. Eu pontifico entre os meus anjos vis, no alto do céu holandês, vejo subir até mim, saindo das brumas e da água, a multidão do juízo Final. Elevam-se lentamente, já vejo chegar o primeiro de todos. Sobre o seu rosto desvairado, meio oculto por uma das mãos, leio a tristeza da condição comum, e o desespero de não poder escapar dela. E eu lamento sem absolver, compreendo sem perdoar e, sobretudo, ah, sinto, enfim, que me adoram! Sim, eu me agito, como poderia ficar placidamente deitado? Preciso estar mais alto que o senhor, meus pensamentos me soerguem. Nessas noites, ou melhor, nessas manhãs, pois a queda produz-se ao romper da aurora, eu saio, parto, numa marcha impetuosa, ao longo dos canais. No céu lívido, as camadas de penas adelgaçam-se, as pombas sobem um pouco, uma claridade rósea anuncia, no nível dos telhados, um novo dia de minha criação. No Damrak, o primeiro bonde faz tinir sua campainha no ar úmido e toca a alvorada da vida na extremidade desta Europa, onde, no mesmo momento, centenas de milhões de homens, meus súditos, arrancam-se penosamente da cama, com a boca amarga, a fim de irem para um trabalho sem alegria. Então, planando em pensamento por cima de todo este continente que me é subordinado sem saber, bebendo a luz de absinto que se eleva, ébrio, enfim, de palavras más, sou feliz, sou feliz, estou lhe dizendo, proíbo-o de não acreditar que sou feliz, que morro de felicidade! Oh, sol, praias e as ilhas sob os alísios, juventude cuja lembrança desespera!
(...)
Receio ter-me exaltado; não choro, contudo. Perdemo-nos, às vezes, duvidamos da evidência, mesmo quando descobrimos o segredo de uma bela vida. Minha solução, com certeza, não é a ideal. Mas, quando não amamos nossa vida, quando sabemos que é preciso mudá-la, não temos escolha, não é? Que fazer para ser outra pessoa? Impossível. Seria preciso já não sermos ninguém, esquecermo-nos por alguém, uma vez pelo menos. Mas como? Não me confunda muito. Eu sou como aquele velho mendigo que não queria largar minha mão, um dia, no terraço de um café: "Ah, meu caro senhor”, dizia ele, "não é que se seja mau, mas perde-se a luz." Sim, perdemos a luz, as manhãs, a santa inocência daquele que perdoa a si mesmo.
Albert Camus, A queda