terça-feira, 12 de maio de 2009
Fernando Morais, O mago
Mobilizar e comover multidões pelo mundo afora, a ponto de ter editores piratas digladiando para publicar suas obras até mesmo num país de enormes contingentes de pobres e analfabetos, como o Egito, não foi algo que caiu do céu para Paulo Coelho. É verdade, o sonho de ser um escritor lido no mundo inteiro e de ter “fama, fortuna e poder” conduziu sua vida, de forma pertinaz, desde a sua adolescência. Mas esse sonho só começaria a se realizar em 1987, quando, já quarentão, publicou O Diário de um Mago. Em menos de um ano o autor já havia vendido 40 mil exemplares do célebre relato de sua trajetória pelo Caminho de Santiago. As vendas seriam poderosamente alavancadas pelo segundo livro “O Alquimista”, editado em 1988. No final do ano seguinte os dois juntos haviam batido na astronômica soma de meio milhão de exemplares. O sucesso transformou Paulo Coelho em um nome nacional e abriu as portas de editoras nos Estados Unidos, Europa e de outras paragens. Vinte anos depois de lançar seu primeiro livro fora do Brasil, ele seria o único autor vivo a ser traduzido em mais línguas do que William Shakespeare.
Até escrever o Diário de um Mago, porém, o garoto magricela , criado nos bairros do Botafogo e da Gávea, no Rio, percorreria uma trajetória mirabolante. Aluno rebelde e relapso, sob os rigores de um pai severíssimo e implacável, acabou sendo internado por três vezes num hospício, e submetido a brutais sessões de eletrochoque. Confuso com sua própria identidade sexual, tomou a iniciativa de ir para cama com homens, para só então decidir que aquele não era seu caminho. O jovem com tantas dificuldades para lidar com as mulheres na adolescência, daria lugar, depois de adulto, a um colecionador de conquistas amorosas – algumas das quais transbordariam para a mídia. Fez de tudo nesse terreno, como participar de orgias e praticar sexo com uma garota no cemitério. Sua peculiar forma de encarar e relacionar-se com as mulheres não impediu, nem impede que mantenha um sólido casamento de 28 anos com a artista plástica Christina Oiticica, de quem, assegura ele, nada nem ninguém fará “jamais” com que se separe. O homem que há mais de três décadas deixou a cocaína e há muitos anos não fuma maconha chegou a mergulhar fundo, e por muito tempo, no mundo das drogas, sem excluir praticamente nada. O tédio diante dos estudos formais, razão de seu permanente insucesso escolar não impediu que Paulo se tornasse voraz consumidor de livros. A leitura indiscriminada que incluía clássicos irretocáveis e bobagens sem valor, ajudaria sua incursão no mundo com que ele sonhava, e que começou pelo teatro infantil, com pequenos espetáculos. Paralelamente, começou a viajar e arranjou bicos na imprensa alternativa – e foi como editor de uma revista underground que seria procurado por alguém que marcaria sua vida, o hoje mitológico roqueiro Raul Seixas, de quem viria a ser parceiro e letrista durante seis anos e 41 canções. Com isso ganhou mais fama, dinheiro e poder do que sonhara até então – e muito, muito menos do que ainda viria a ganhar.
Antes e durante a vigência da parceria com Raul, a ânsia permanente por novas experiências , de um lado, e sua tendência onívora à leitura, por outro, levaram-no a mergulhos assustadores. Ainda adolescente flertou com o suicídio, e acabou degolando um animal doméstico para que “o anjo da morte” tivesse alguma alma para levar que não fosse a sua. Já adulto, apoiou a decisão de uma namorada de se suicidar, traumatizada após abortar um filho dele. Ao transpor as fronteiras do misterioso universo das trevas ele chegaria a perigosos extremos e incorreria em práticas quase inacreditáveis, como ter como escravo , com contrato assinado, um jovem estudante que se iniciava no esoterismo. Fazia invocações ao demônio enquanto tomava banho de ervas, e chegou a propor um pacto formal ao Diabo: entregar sua alma em troca de poderes absolutos. Sua carreira no satanismo chegou ao fim após um pavoroso e arrepiante episódio que durou doze intermináveis horas e que Paulo descreve como sendo seu encontro com o demônio. A terrível visão, compartilhada com a namorada, representaria o início do retorno de Paulo à fé cristã incutida pelos rigorosos padres jesuítas do colégio que fora educado. Ainda assim continuava acreditando ter encontrado formas de atingir o sobrenatural e agir sobre as forças da natureza, fazendo, por exemplo, ventar e chover com a força do pensamento.
O fato de ter sido um adolescente e depois um jovem adulto alienado e indefeso à política não impediu que fosse preso duas vezes pela ditadura militar, e num terceiro episódio, seqüestrado pelo DOI- Codi, o mais brutal instrumento de repressão – o que lhe deixou profundas marcas e acentuou traços de uma ancestral paranóia. Outro tipo de perseguição, o da crítica brasileira, que, com raríssimas exceções, despreza seus livros e o trata como subliterato, não parece afetá-lo. Ele só se declara indignado quando as restrições a seu trabalho implicam menosprezo a uma entidade que cultiva com dedicação plena e paciência oriental: seus leitores. Para contrabalançar o desdém da crítica brasileira, não faltam a Paulo manifestações em sentido contrário para exibir. E não se fala aqui de sua eleição para a Academia Brasileira de Letras ou mesmo de condecorações indiscutivelmente honrosas que lhe foram conferidas no exterior, como a Legión d’Honneur da França, mas de um maciço, consistente elenco de elogios recebidos de críticos de dezenas de países, entre os quais o venerado escritor e semiólogo italiano Umberto Eco.
Esses fatos da vida de Paulo são apenas uma amostra modesta da trajetória extraordinária de um brasileiro cujo trânsito internacional só se compara ao de Pelé. Por um triz, no entanto, nada disso teria sido possível, pois Paulo nasceu morto.
Paulo Coelho de Souza nasceu em uma chuvosa madrugada de 24 de agosto de 1947, dia de São Bartolomeu, na Casa de Saúde São José, no Humaitá, bairro de classe média do Rio de Janeiro, Brasil. Nasceu morto. Os médicos previam dificuldades naquele parto, o primeiro da jovem dona de casa Lygia Araripe Coelho de Souza, de 33 anos. O bebê seria não apenas o primogênito do casal, mas também o primeiro neto dos quatro avós e o primeiro sobrinho de tias e tios de ambos os lados. Os exames iniciais apontavam um risco considerável: a criança parecia ter ingerido uma mistura fatal de mecônio – ou seja, suas próprias fezes – com líquido amniótico. Depois disso, só um milagre o faria nascer com vida. Inerte no ventre materno, sem manifestar qualquer intenção de mover-se em direção ao mundo, o recém-nascido teve de ser retirado a fórceps. Exatamente à meia-noite e cinco minutos, ao puxá-lo para fora, o que era realizado com movimentos rotatórios do instrumento, o médico deve ter ouvido um ligeiro ruído, semelhante ao estalo de um lápis que se quebra: era a delicada clavícula do bebê, que não resistira à pressão de uma das hastes do fórceps. Mas não havia por que lamentar o acidente: o bebê, um menino, estava morto, aparentemente asfixiado pelo líquido que o protegera durante nove meses no corpo da mãe.
Em meio ao desespero, o primeiro nome que veio à cabeça de Lygia, católica fervorosa, para pedir socorro, foi o do padroeira da maternidade:
- Meu divino São José, traga de volta o meu filho! Salve-o São José! Meu bebê está em suas mãos!
Em prantos, os pais pediram a presença de alguém que pudesse dar a extrema unção ao natimorto. À falta de um padre, localizou-se uma freira do próprio hospital para o sacramento final, até que ao choro dos pais, somou-se um gemido, quase um miado: era ele, o menino, que estava bem vivo. Em estado de coma profundo, mas vivo. Nascer tinha sido o primeiro desafio imposto pelo destino àquele garotinho, e ele sobrevivera.
Fernando Morais, O mago