Há um principio bom que criou a ordem, a luz e o homem, e um princípio mau que criou o caos, as trevas e a mulher.
PITÁGORAS
Tudo o que os homens escreveram sobre as mulheres deve ser suspeito, pois eles são, a um tempo, juiz e parte.
POULAIN DE LA BARRE
"A fêmea é fêmea em virtude de certa carência de qualidades", diz Aristóteles. "Devemos considerar o caráter das mulheres como sofrendo de certa deficiência natural". E Sto. Tomás, depois dele, decreta que a mulher é um homem incompleto, um ser "ocasional". É o que simboliza a história do Gênese em que Eva aparece como extraída, segundo Bossuet, de um "osso supranumerário" de Adão. A humanidade é masculina e o homem define a mulher não em si mas relativamente a ele; ela não é considerada um ser autônomo. "A mulher, o ser relativo...", diz Michelet.
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Por que as mulheres não contestam a soberania do macho? Nenhum sujeito se coloca imediata e espontaneamente como inessencial; não é o Outro que definindo-se como Outro define o Um; ele é posto como Outro pelo Um definindo-se como Um. Mas para que o Outro não se transforme no Um é preciso que se sujeite a esse ponto de vista alheio. De onde vem essa submissão na mulher?
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Em toda parte e em qualquer época, os homens exibiram a satisfação que tiveram de se sentirem os reis da criação. "Bendito seja Deus nosso Senhor e o Senhor de todos os mundos por não me ter feito mulher", dizem os judeus nas suas preces matinais, enquanto suas esposas murmuram com resignação: "Bendito seja o Senhor que me criou segundo a sua vontade". Entre as mercês que Platão agradecia aos deuses, a maior se lhe afigurava o fato de ter sido criado livre e não escravo e, a seguir, o de ser homem e não mulher. Mas os homens não poderiam gozar plenamente esse privilégio, se não o houvessem considerado alicerçado no absoluto e na eternidade: de sua supremacia procuraram fazer um direito. "Os que fizeram e compilaram as leis, por serem homens, favoreceram seu próprio sexo, e os jurisconsultos transformaram as leis em princípios", diz ainda Poulain de Ia Barre. Legisladores, sacerdotes, filósofos, escritores e sábios empenharam-se em demonstrar que a condição subordinada da mulher era desejada no céu e proveitosa à terra. As religiões forjadas pelos homens refletem essa vontade de domínio: buscaram argumentos nas lendas de Eva, de Pandora, puseram a filosofia e a teologia a serviço de seus desígnios, como vimos pelas frases citadas de Aristóteles e Sto. Tomás. Desde a Antiguidade, moralistas e satíricos deleitaram-se com pintar o quadro das fraquezas femininas. Conhecem-se os violentos requisitórios que contra elas se escreveram através de toda a literatura francesa: Montherlant reata, com menor brilho, a tradição de Jean de Meung. Essa hostilidade parece, algumas vezes, justificável, mas na maior parte dos casos é gratuita. Na realidade, recobre uma vontade de autojustificação mais ou menos habilmente mascarada. "E mais fácil acusar um sexo do que desculpar o outro", diz Montaigne. Em certos casos, o processo é evidente. E impressionante, por exemplo, que o código romano, a fim de restringir os direitos das mulheres, invoque "a imbecilidade, a fragilidade do sexo" no momento em que, pelo enfraquecimento da família, ela se torna um perigo para os herdeiros masculinos. É impressionante que no século XVI, a fim de manter a mulher casada sob tutela, apele-se para a autoridade de Santo Agostinho, declarando que "a mulher é um animal que não é nem firme nem estável", enquanto à celibatária se reconhece o direito de gerir seus bens. Montaigne compreendeu muito bem a arbitrariedade e a injustiça do destino imposto à mulher: "Não carecem de razão as mulheres quando recusam as regras que se introduziram no mundo, tanto mais quando foram os homens que as fizeram sem elas. Há, naturalmente, desentendimentos e disputas entre elas e nós"; mas ele não chega a defendê-las verdadeiramente.
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A fim de provar a inferioridade da mulher, os antifeministas apelaram não somente para a religião, a filosofia e a teologia, como no passado, mas ainda para a ciência: biologia, psicologia experimental etc. Quando muito, consentia-se em conceder ao outro sexo "a igualdade dentro da diferença".
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Mas é sem dúvida impossível tratar qualquer problema humano sem preconceito: a própria maneira de pôr as questões, as perspectivas adotadas pressupõem uma hierarquia de interesses: toda qualidade envolve valores. Não há descrição, dita objetiva, que não se erga sobre um fundo ético. Ao invés de tentar dissimular os princípios que se subentendem mais ou menos explicitamente, cumpre examiná-los. Desse modo, não somos obrigadas a precisar em cada página que sentido se dá às palavras superior, inferior, melhor, pior, progresso, retrocesso etc. Se passamos em revista algumas dessas obras consagradas à mulher, vemos que um dos pontos de vista mais amiúde adotados é o do bem público, do interesse geral; em verdade, cada um entende, com isso, o interesse da sociedade tal qual deseja manter ou estabelecer. Quanto a nós, estimamos que não há outro bem público senão o que assegura o bem individual dos cidadãos. É do ponto de vista das oportunidades concretas dadas aos indivíduos que julgamos as instituições. Mas não confundimos tampouco a ideia de interesse privado com a de felicidade, ponto de vista que se encontra freqüentemente. As mulheres de harém não são mais felizes do que uma eleitora? Não é a dona de casa mais feliz do que a operária? Não se sabe muito precisamente o que significa a palavra felicidade, nem que valores autênticos ela envolve. Não há nenhuma possibilidade de medir a felicidade de outrem e é sempre fácil declarar feliz a situação que se lhe quer impor. Os que condenamos à estagnação, nós os declaramos felizes sob o pretexto de que a felicidade é a imobilidade. É, portanto, uma noção a que não nos referimos. A perspectiva que adotamos é a da moral existencialista. Todo sujeito coloca-se concretamente através de projetos como uma transcendência; só alcança sua liberdade pela sua constante superação em vista de
outras liberdades; não há outra justificação da existência presente senão sua expansão para um futuro indefinidamente aberto. Cada vez que a transcendência cai na imanência, há degradação da existência em "em si", da liberdade em facticidade; essa queda é uma falha moral, se consentida pelo sujeito. Se lhe é inflingida, assume o aspecto de frustração ou opressão. Em ambos os casos, é um mal absoluto. Todo indivíduo que se preocupa em justificar sua existência, sente-a como uma necessidade indefinida de se transcender. Ora, o que define de maneira singular a situação da mulher é que, sendo, como todo ser humano, uma liberdade autônoma, descobre-se e escolhe-se num mundo em que os homens lhe impõem a condição do Outro. Pretende-se torná-la objeto, votá-la à imanência, porquanto sua transcendência será perpetuamente transcendida por outra consciência essencial e soberana. O drama da mulher é esse conflito entre a reivindicação fundamental de todo sujeito que se põe sempre como o essencial e as exigências de uma situação que a constitui como inessencial. Como pode realizar-se um ser humano dentro da condição feminina? Que caminhos lhe são abertos? Quais conduzem a um beco sem saída? Como encontrar a independência no seio da dependência? Que circunstâncias restringem a liberdade da mulher, e quais pode ela superar? São essas algumas questões fundamentais que desejaríamos elucidar. Isso quer dizer que, interessando-nos pelas oportunidades dos indivíduos, não as definiremos em termos de felicidade e sim em termos de liberdade.
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A separação dos indivíduos em machos e fêmeas surge, pois, como um fato irredutível e contingente. A maior parte das filosofias tomou-a como admitida sem pretender explicá-la. Conhece-se o mito platônico: no princípio havia homens, mulheres e andróginos; cada indivíduo possuía duas faces, quatro braços, quatro pernas e dois corpos, colados um a outro; foram um dia "partidos em dois, da maneira como se partem os ovos" e desde então cada metade procura reunir-se à sua metade complementar; os deuses decidiram, posteriormente, que pela junção das duas metades dessemelhantes novos seres humanos seriam criados. Mas é só o amor que essa história se propõe explicar: a divisão em sexos é tomada, de início, como um dado. Aristóteles não a justifica melhor, pois se a cooperação da matéria e da forma é exigida em toda ação, não é necessário que os princípios ativos e passivos se distribuam em duas categorias de indivíduos heterogêneos. Assim é que Sto. Tomás declara que a mulher é um ser "ocasional", o que é uma maneira de afirmar — numa perspectiva masculina — o caráter acidental da sexualidade. Hegel, entretanto, teria sido infiel a seu delírio racionalista se não houvesse tentado fundamentá-la logicamente.
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Quanto ao papel respectivo dos dois sexos, trata-se de um ponto acerca do qual as opiniões variaram muito. Foram, a princípio, desprovidas de fundamento científico, refletiam unicamente mitos sociais. Pensou-se durante muito tempo, pensa-se ainda em certas sociedades primitivas de filiação uterina, que o pai não participa de modo algum na concepção do filho: as larvas ancestrais infiltrar-se-iam sob a forma de germes no ventre materno. Com o advento do patriarcado, o macho reivindica acremente sua posteridade; ainda se é forçado a concordar em atribuir um papel à mulher na procriação, mas admite-se que ela não faz senão carregar e alimentar a semente viva: o pai é o único criador. Aristóteles imagina que o feto é produzido pelo 29 encontro do esperma com o mênstruo; nessa simbiose a mulher fornece apenas uma matéria passiva, sendo o princípio masculino, força, atividade, movimento, vida. E essa também a doutrina de Hipócrates que reconhece duas espécies de sêmens: um fraco ou feminino e outro forte, masculino. A teoria aristotélica perpetuou-se através de toda a Idade Média e até a época moderna. No fim do século XVII, Harvey, sacrificando cervas após a cobertura, encontrou, nas trompas uterinas, vesículas que imaginou serem ovos mas que, na realidade, eram embriões. O dinamarquês Stenon deu o nome de ovários às glândulas genitais femininas, que se denominavam, até então, "testículos femininos", e observou na superfície delas a existência de vesículas que Graaf, em 1677, identificou erroneamente com o ovo e às quais deu o nome.
Simone de Beauvoir - O segundo sexo