domingo, 19 de maio de 2013
O fascínio do poço
Devia ter grande profundidade - certamente não dava para ver o fundo. Ao redor da beira, tão espessa era a fímbria de juncos, que seus reflexos criavam uma escuridão semelhante à de águas insondáveis. Havia alguma coisa branca lá no meio, contudo. A grande fazenda, a menos de dois quilômetros, estava para ser vendida e uma pessoa zelosa, a não ser que fosse, por brincadeira, um garoto, tinha fincado um dos cartazes que anunciavam a venda, com cavalos de tração, novilhas e implementos agrícolas, num toco de árvore bem ao lado do poço. O anúncio branco refletia-se no centro da água que, quando o vento soprava, dava a impressão de ondular e encrespar-se como uma peça de roupa ao ser lavada. As grandes letras vermelhas nas quais Moinho Romford estava impresso na água ficavam à tona. E havia vestígios de vermelho no verde que ondulava de lado a lado nas margens.
Se nos sentássemos entre os juncos e olhássemos para o poço - não se sabem bem o quê, mas os poços exercem um curioso fascínio -, as letras pretas e vermelhas e o branco papel pareciam ralamente jazer na superfície, ao passo que por baixo seguia uma profunda vida subaquática semelhante ao ruminar, ao remoer da mente. Muitas, muitas pessoas devem ter ido ali sozinhas, de tempos em tempos, de era em era, para deixar cair seus pensamentos na água e lhe indagar qualquer coisa, tal como faziam as pessoas agora, nesse fim de tarde de verão. Talvez esta fosse a razão da fascinação do poço - que ele continha em suas águas todas as espécies de queixas, confidências, fantasias, não em voz alta nem em forma impressa, mas sim em estado líquido, a flutuarem, quase desencarnadas, umas sobre as outras. Por entre elas nadaria um peixe, para que um junco, com sua lâmina, o cortasse em dois; ou a lua, com sua placa de brancura, as aniquilaria. O encanto do poço é que os pensamentos tinham sido ali deixados por pessoas que partiram para longe e, sem seus corpos, tais pensamentos vagavam livremente, amistosos e comunicativos, para dentro e para fora das águas comuns a todos.
Entre esses pensamentos líquidos, alguns pareciam conservar-se unidos e - por um simples momento - constituir pessoas reconhecíveis. Divisava-se então um rosto rubro e barbado que se abaixava sobre o poço para nele beber. Estive aqui em 1851, após o calor da Grande Exposição. Vi a rainha inaugurá-la. E a voz soltava um riso leve, despreocupado e fluido, como se o homem tivesse se livrado de suas botas de elástico nos lados e posto ali na beira do poço seu chapéu. Meu Deus, como estava quente! E agora tudo se foi, tudo se esboroou decerto, pareciam dizer os pensamentos, ao oscilar por entre o juncal. Mas eu era uma namorada, começava outro pensamento, deslizando sobre aquele num ordeiro silêncio, como peixes que ao se agrupar não se estorvam. Era ainda moça; costumávamos descer da fazenda até aqui (o anúncio de venda refletia-se na superfície da água), no verão de 1662. Os soldados nunca nos viram da estrada. Fazia muito calor. Deitávamo-nos bem à vontade. Ela estava escondida com seu amado nos juncos, rindo para dentro do poço e nele furtivamente introduzindo ideias de amor eterno, de ardentes beijos e desespero. Já eu era felicíssimo, disse outro pensamento, resvalando animadamente por cima do desespero da moça (pois ela tinha se afogado). Costumava pescar aqui. Nunca pegamos a carpa-gigante, porém a vimos uma vez - no dia em que Nelson lutou em Trafalgar. Estava ali sob o salgueiro - dou a minha palavra! Que colosso que era! dizem que jamais foi pescada. Ai, ai de mim, suspirou uma voz, a se esgueirar por sobre a do rapaz. Voz assim tão tristonha devia vir bem lá do fundo do poço, pois alteando-se ela se sobrepunha às demais, como uma concha suspende tudo que encontra numa vasilha com água. Essa era a voz que todos nós desejávamos ouvir. As outras, sem exceção, suavemente deslizaram para a beira do poço afim de ouvir a voz que - parecendo tão triste - devia com certeza saber a razão de tudo isso. Pois todas elas também queriam saber.
Chegando-se mais perto do poço, os juncos eram afastados para poder se ver mais fundo, através dos reflexos, através das faces, através das vozes, até o fundo em si mesmo. Mas lá, por baixo do homem que estivera na Exposição; da moça que se afogara; do rapaz que vira o peixe; e da voz que exclamava ai, ai de mim! Sempre havia todavia algo mais. Sempre outra face, outra voz. Um pensamento vinha e cobria outro. Pois, embora haja momentos em que uma concha se mostra a ponto de suspender todos nós à luz do dia, com nossos pensamentos e anseios e indagações e confissões e desilusões, de algum modo a concha deixa alguma coisa escapar e uma vez mais nós escorremos de volta pela beira do poço. E uma vez mais todo seu centro é coberto pelo reflexo do cartaz que anuncia a venda da Fazenda e Moinho Romford. É por isso talvez que gostamos de nos sentar para contemplar os poços.
Virgínia Woolf, O fascínio do poço
(V. Woolf, Contos Completos, p.323-325 - Tradução: Leonardo Fróes)