terça-feira, 10 de abril de 2012

Virgínia Woolf, Orlando

Para abrir a janela, pousou a mão no peitoril: e ela instantaneamente se coloriu de vermelho, azul e amarelo, como a asa de uma borboleta. Assim, os que gostam de símbolos e têm queda para decifrá-los poderiam observar que, embora as lindas pernas, o belo corpo e os ombros bem feitos estivessem todos decorados com as várias cores da luz heráldica, o rosto de Orlando, ao abrir a janela, estava iluminado apenas pelo próprio sol. Seria impossível encontrar mais cândido e mais sombrio rosto. Feliz a mãe que engendra, e mais feliz ainda o biógrafo que registra a vida de um homem assim. Nem ela nunca se atormentará, nem ele terá de invocar o auxílio de novelistas ou poetas. Irá de empresa em empresa, de glória em glória, de cargo em cargo, seguido pelo seu escriba, até alcançarem aquele assento que representa o auge de seu comum desejo. (...) O vermelho das suas faces era coberto de uma penugem de pêssego; a penugem do buço era  apenas um pouco mais densa que a das faces. Os lábios eram finos e levemente repuxados sobre dentes de uma deliciosa brancura de amêndoa. Nada perturbava o breve, tenso voo do sagitado nariz; o cabelo era escuro, as orelhas pequenas e bem unidas à cabeça. Mas, ai de mim, que esses catálogos de beleza juvenil não poderiam terminar sem a menção dos olhos e da testa!  Ai de mim que as pessoas  raramente nascem sem esses três atributos! - pois, ao olharmos para Orlando parado à janela, temos de reconhecer que possuía olhos como violetas encharcadas, tão grandes que a água parecia chegar às bordas e alargá-los; e uma testa como a curva de uma cúpula de mármore, apertada entre os dois brancos medalhões das têmporas. Se olharmos para a sua testa e para os seus olhos, cairemos em êxtase. Se olharmos para a sua testa e para os seus olhos, teremos de reconhecer mil coisas desagradáveis, que todos os bons biógrafos se esforçam por ignorar. Perturbavam-no espetáculos como o de sua mãe, uma belíssima dama de verde, que saía a dar de comer aos pavões, com Twitchett, sua aia, atrás de si; exaltavam-no certos espetáculos - os pássaros e as árvores; e faziam-no enamorar-se da morte - o céu da tarde, as gralhas de retorno. E assim, subindo-lhe pela escada em espiral até o cérebro (que era espaçoso), todos esses espetáculos - e também os ruídos do jardim, o martelo a bater, a madeira cortada -, começou aquele tumulto e confusão de paixões e emoções que um bom biógrafo sempre detesta. Mas, prosseguindo: Orlando encolheu lentamente o pescoço, sentou-se à mesa, e, com o ar semiconsciente de quem está fazendo o que faz todos os dias de sua vida a essa hora, sacou de um caderno com o título: AE Thelbert; Tragédia em Cinco Atos, e mergulhou na tinta uma velha e manchada pena de ganso.
Em breve, tinha enchido de versos mais de dez páginas. Era fluente, sem dúvida, mas era abstrato. O vício, o Crime, a Miséria eram as personagem de seu drama; havia reis e rainhas de territórios impossíveis; horrendas intrigas os abatiam; nobres sentimentos os inundavam; não se dizia uma palavra como ele mesmo a teria dito; mas tudo estava expresso com uma fluência e uma doçura que, levando em conta a sua idade - ainda não tinha dezessete anos - e que o século XVI tinha ainda alguns anos para rodar, eram bastante notáveis. Mas afinal fez uma pausa. Estava descrevendo, como todos os poetas jovens sempre descrevem, a natureza, e, para determinar precisamente um tom de verde, olhou (e nisso mostrou mais audácia que muitos) para a própria coisa, que era um loureiro por baixo da janela. Depois disso, naturalmente, não pôde mais escrever. Uma coisa é o verde na natureza; outra coisa, na literatura. Entre a natureza e as letras parece haver uma natural antipatia; basta juntá-las para que se estraçalhem. O tom verde que Orlando agora via estragou-lhe a rima, quebrou-lhe o metro. Além disso, a natureza tem suas manhas. Basta olhar pela janela as abelhas entre as flores, um cão que boceja, o sol que se põe, basta pensar " quantos pores de sol verei ainda", etc, etc. (o pensamento é demasiadamente conhecido para que valha a pena escrever mais), e deixa-se cair a pena, toma-se uma capa e sai-se do quarto, a largos passos, e tropeça-se numa arca pintada. Porque Orlando era um pouco desajeitado.
Evitou cuidadosamente encontrar qualquer pessoa. Stubbs, o jardineiro, vinha andando pelo caminho. Escondeu-se atrás de uma árvore, até que ele tivesse passado. Esgueirou-se por um portinha do muro do jardim. Ladeou estábulos, canis, destilarias, carpintarias, lavanderias, os lugares onde se fabricam velas de sebo, (... ) , cosem gibões, porque a casa era uma cidade ressoante de homens trabalhando em vários ofícios - e alcançou, sem ser visto, o caminho de fetos que subia pelo parque. Há, talvez, um parentesco entre as qualidades; uma arrasta outra consigo, e o biógrafo chamaria aqui a atenção para o fato de que esse desajeitamento acompanha muitas vezes o amor à solidão. Tendo tropeçado numa arca, Orlando gostava naturalmente de lugares solitários, de vastas perspectivas, e de sentir-se para sempre, sempre e sempre sozinho.
Assim, depois de um longo silêncio, "Estou só", exalou por fim, entreabrindo pela primeira vez os lábios nessa narrativa. Tinha caminhado muito depressa, trepando por entre fetos espinheiros, espantando cervos e pássaros silvestres, até um lugar coroado por um carvalho solitário. Estava muito alto; tão alto, na verdade, que dezenove condados britânicos podiam ser avistados a seus pés; e, nos dias claros, trinta ou talvez quarenta, se o ar estivesse muito limpo. Às vezes, podia-se ver o canal da Mancha, onda sobre onda. Podiam-se ver os rios e os barcos de passeio neles deslizando; e galeões partindo para o mar; e frotas com penachos de fumo, das quais vinha o surdo ribombo dos canhões; fortificações na costa; e castelos no meio dos prados; e aqui uma  atalaia, e ali uma fortaleza, e ainda alguma vasta mansão como a do pai de Orlando, amontoada como uma cidade no vale cercado de muralhas. Para leste, ficavam as agulhas de Londres e a fumaça da cidade; às vezes, bem na linha do horizonte, quando o vento soprava uma boa direção, até o escarpado topo e o perfil dentado de Snowdon apareciam, montanhosos, entre as nuvens. Por um momento Orlando esteve contando, mirando, reconhecendo. Aquela era a casa de seu pai; aquela, a de seu tio. Sua tia era dona daqueles três grandes torreões, lá entre as árvores. Suas eram a charneca e a floresta; o faisão e o cervo, o lobo, o texugo e a borboleta. 
Suspirou profundamente e arrojou-se - havia uma paixão em seus movimentos que justifica a palavra - ao chão, aos pés do carvalho. Sob toda essa transitoriedade do verão, gostava de sentir debaixo do seu corpo o espinhaço da terra - pois assim se lhe afigurava a dura raiz do carvalho; ou, por sucessão de imagens, o lombo de um grande cavalo que ia cavalgando; ou a cobertura de um navio agitado - qualquer coisa, na verdade, contando que fosse firme, pois sentia necessidade de alguma coisa a que pudesse amarrar seu incerto coração, o coração que dava arrancos no seu peito; o coração que parecia cheio de perfumadas e amorosas brisas, todas as  tardes, àquela hora, quando saía a passeio.  Amarrou-o ao carvalho, e, ao descansar ali, o tumulto que sentia, dentro e em redor de si, gradualmente serenou; as pequenas folhas pendiam, o cervo parava; estacionavam as pálidas nuvens estivais, seus membros pesavam no chão; e tão imóvel se quedou que pouco a pouco os cervos se foram aproximando, e as gralhas giravam em torno de si, e as andorinhas baixavam em círculos, e as libélulas passavam num disparo, como se toda a fertilidade e a amorosa atividade de uma tarde de verão se fossem tecendo qual uma teia de aranha em redor do seu corpo.

Virgínia Woolf, Orlando