segunda-feira, 16 de abril de 2012

Os espelhos

Francine van  hove


Eu, que senti o medo dos espelhos
Não é frente ao cristal impenetrável
Onde acaba e começa, inabitável,
Um espaço impossível de reflexos.

Mas frente à àgua especular que imita
O outro azul em seu profundo céu
Que risca às vezes o ilusório voo
Da ave inversa ou que um tremor agita

E frente à superficie silenciosa
Do ébano sutil cuja pureza
Repete como um sonho toda a alvura
De vago mármore ou de vaga rosa,

Hoje, ao cabo de tantos e perplexos
Anos de errar sob a mudável lua,
Me pergunto que acaso da fortuna
Fez que eu temor sentisse dos espelhos.

Espelhos de metal, emascarado
Espelho de caoba que, na bruma
De eu rubro crepúsculo, esfuma
Esse rosto que mira e que é mirado.

Infinitos os vejo, elementais
Executores de um antigo pacto.
Multiplicar o mundo como o ato
Generativo, insone e fatais.

Prolongam este vão e incerto mundo
Em sua tão veloz teia de aranha:
à tarde muitas vezes os empana
o hálito de um homem morimbundo.

O cristal nos espreita. Se entre as quatro
Paredes do aposento há um espelho.
Não estou só. Há outro. Há o reflexo
Que erege na alba um sigiloso teatro.

Tudo acontece e nada se recorda
Naqueles gabinetes cristalinos
Onde, como fantásticos rabinos,
Lemos os livros da direita à esquerda.

Cláudio, rei de uma tarde, rei sonhado,
Não sentiu que era um sonho até o dia
Em que um ator mimou-lhe a felonia
Com arte silenciosa, num tablado.

Que haja sonhos é raro, que haja espelhos,
Que o costumeiro e gasto repertório
De cada dia inclua o ilusório
Orbe profundo que urdem os reflexos.

Deus (pus-me a imaginar) põe um empenho
Em toda essa irreal arquitetura.
A qual constrói a luz com a polidura
Do vidro e faz a sombra com o sonho

Deus inventou as noites que se armam
De sonhos e as imagens dos espelhos
Para que o homem sinta que é reflexo
E vaidade. Por isso nos alarmam.


 Jorge Luis Borges
O Fazedor, tradução de Rolando Roque da Silva