Foi a última noite que dormi aqui, e que sonhando com ela melei estes lençóis. Como toda manhã, arrancarei a roupa de cama e farei uma trouxa, que atirarei pela janela dos fundos para a lavadeira apanhar. Mas vai restar visível uma mancha úmida no colchão, que tratarei de virar como faço toda manhã, deixando para cima o lado das manchas secas. Terei a sensação de que o colchão pesa mais um pouco a cada dia, e imaginarei que na palha dentro dele, se impregna a pasta dos meus sonhos e atos solitários.*
Para o jardineiro do casarão, mamãe era mesmo como a flor, que ao mudar de vaso às vezes fenece.
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Vai ver que andei delirando, e de bom grado voltarei a falar somente de coisas que você já sabe. Se com a idade a gente dá para repetir casos antigos, palavra por palavra, não é por cansaço da alma, é por esmero. É para si próprio que um velho repete sempre a mesma história, como se assim tirasse cópias dela, para a hipótese de a história se extraviar. Não sei se já lhe contei como conheci Matilde na missa de sétimo dia do meu pai, quando ela falou Eulálio de tal jeito, que nem mesmo atrizes sensuais conseguiriam reproduzir na minha cama. Também acho que lhe contei como fui vigiá-la um dia depois, toda serelepe à saída da escola, era a mais moreninha da classe. Passei a buscá-la todo dia, só de de Matilde no saguão da escola juntei recordações em série para o resto da vida.
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O médico sempre me corta a palavra para narrar suas atividades numas paragens que só ele conhece, nesses matos onde estrangeiros gostam de se enfiar. E toca a falar de paludismo, esquistossomose, mal de Chagas, hanseníase, e entre uma e outra endemia me pego a contemplar o forte de Copacabana, esperando que desponte um transatlântico por trás da pedra. Ao meio-dia Matilde leva a Eulalinha para casa, onde lhe dá de mamar e a embala com a cantiga do boitatá-pega-neném. Volta para sentar comigo, me faz deitar a cabeça no seu colo e diz, abre a boca e fecha os olhos. Enche minha boca de areia e sai em disparada a fim de que eu a persiga mar a fundo, depois me chama para catar tatuís ou jogar peteca.
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É estranho ter lembranças de coisas que ainda não aconteceram, acabo de lembrar que Matilde vai sumir para sempre.
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... A orquestra não dava pausa, a música era repetitiva, a dança se revelou vulgar, pela primeira vez julguei meio vulgar a mulher com quem eu tinha me casado. Depois de meia hora eles voltaram se abanando, e escorria suor pelo colo de Matilde decote abaixo. Bravô, eu gritei, bravô, e ainda os estimulei a dançar o próximo tango, mas Dubosc dise que já era tarde, e que eu tinha um ar fatigado. Fatigado estava ele, que pediu carona até seu hotel a duas quadras, e se recolheu sem se despedir direito, nem sequer beijou a mão de Matilde. Talvez tenha concluído, ao longo da noitada, que ela era mulher para dançar maxixe, e não de beijar a mão. E no caminho de casa Matilde pegou a assobiar, assobiava a melodia do tal maxixe. Parecia má-criação, de uma feita assobiou num jantar de minha mãe, que se retirou da mesa. Mas agora deve ter percebido o quanto me exasperava, porque se interrompeu para perguntar o que havia comigo. Nada, azia, eu disse, e não era mentira, meu estômago não suportava cachaça, que agora era moda servir até em locais requintados. Ela saiu do carro antes que eu lhe abrisse a porta, e mal entramos em casa foi para a cozinha, tinha mania de ir para a cozinha. Volta e meia levava a criança à cozinha, dava conversa às empregadas, era vezeira em almoçar ali com a babá. Então me vi tomado de um sentimento obscuro, entre a vergonha e a raiva de gostar de uma mulher que vive na cozinha. Eu seguia Matilde, que falava sozinha, que meio cantarolando perguntava pelo chá de boldo, e de repente não sei o que me deu, agarrei-a com violência pelas costas. Joguei-a contra a parede e ela não entendeu, começou a emitir gemidos nasais, o rosto achatado nos ladrilhos. Prendi seus punhos na parede, ela se debatia, mas eu a controlava com meus joelhos atrás dos seus. E como meu tronco eu a apertava, eu a espremia a valer, eu quase a esmagava na parede, até que Matilde disse, eu vou, Eulálio, e seu corpo tremeu inteiro, levando o meu a tremer junto.
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Quando eu sair daqui, vamos nos casar na fazenda da minha feliz infância, lá na raiz da serra. Você vai usar o vestido e o véu da minha mãe, e não falo assim por estar sentimental, não é por causa da morfina. Você vai dispor dos rendados, dos cristais, da baixela, das joias e do nome da minha família. Vai dar ordens aos criados, vai montar no cavalo da minha antiga mulher. E se na fazenda ainda não houver luz elétrica, providenciarei um gerador para você ver televisão. Vai ter também ar condicionado em todos os aposentos da sede, porque na baixada hoje em dia faz muito calor. Não sei se foi sempre assim, se meus antepassados suavam debaixo de tanta roupa. Minha mulher, sim, suava bastante, mas ela já era de uma nova geração e não tinha a austeridade da minha mãe. Minha mulher gostava de sol, voltava sempre afogueada das tardes do areal de Copacabana. Mas nosso chalé em Copacabana já veio abaixo, e de qualquer forma eu não moraria com você na casa de outro casamento, moraremos na fazenda da raiz da serra. Vamos nos casar na capela que foi consagrada pelo cardeal arcebispo do Rio de Janeiro em mil oitocentos e lá vai fumaça. Na fazenda você tratará de mim e de mais ninguém, de maneira que ficarei completamente bom. E plantaremos árvores, e escreveremos livros, e se Deus quiser ainda criaremos filhos nas terras de meu avô.Mas se você não gostar da raiz da serra por causa das pererecas e dos insetos, ou da lonjura ou de outra coisa, poderíamos morar em Botafogo, no casarão construído por meu pai. Ali há quartos enormes, banheiros de mármores com bidês, vários salões com espelhos venezianos, estátuas, pé-direito monumental e telhas de ardósias importadas da França. Há palmeiras, abacateiros e amendoeiras no jardim, que virou estacionamento depois que a embaixada da Dinamarca mudou para Brasília. Os dinamarqueses me compraram o casarão a preço de banana, por causa das trapalhadas do meu genro. Mas se amanhã eu vender a fazenda, que tem duzentos alqueires de lavoura e pastos, cortados por um ribeirão de água potável, talvez possa reaver o casarão de Botafogo e restaurar os móveis de mogno, mandar afinar o piano Pleyel da minha mãe. Terei bricolagens para me ocupar anos a fio, e caso você deseje prosseguir na profissão, irá para o trabalho a pé, visto que o bairro é farto em hospitais e consultórios. Aliás, bem em cima do nosso próprio terreno levantaram um centro médico de dezoito andares, e com isso acabo de me lembrar que o casarão não existe mais. E mesmo a fazenda na raiz da serra, acho que desapropriaram em 1947 para passar a rodovia. Estou pensando alto para que você me escute. E falo devagar, como quem escreve, para que você me transcreva sem precisar ser taquígrafa, você está aí? Acabou a novela, o jornal, o filme, não sei por que deixam a televisão ligada, fora do ar. Deve ser para que esse chuvisco me encubra a voz, e eu não moleste os outros pacientes com meu palavratório.
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... adoro ver seus olhos de rapariga rondando a enfermaria: eu, o relógio, a televisão, o celular, eu, a cama do tetraplégico, o soro, a sonda, o velho do Alzheimer, o celular, a televisão, eu, o relógio de novo, e não deu nem um minuto. Também acho uma delícia quando você esquece os olhos em cima dos meus, para pensar no galã da novela, nas mensagens do celular, na menstruação atrasada."
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A figurar Matilde trancada num sanatório, era mil vezes preferível perambular pela cidade, adivinhando a silhueta dela em cada janela de arranha-céu. Algum dia eu haveria de topar com ela, mesmo que se passassem anos, mesmo aos beijos com outro. E se algum dia encontrasse Matilde com outro, mais que olhar Matilde eu olharia o outro, eu necessitava saber como era esse homem, para dar substância ao meu ciúme. Eu pensava nesse homem constantemente, muitas noites cheguei a sonhar com ele, mas ao despertar não conseguia lhe conferir forma humana. Nem ódio eu podia ter de um sujeito que não me ultrajou, não entrou na minha casa, não fumou meus charutos, não violentou minha mulher. E pouco a pouco me dispus a aceitá-lo, procurei imaginá-lo como uma alma delicada, como alguém que olharia por Matilde na minha falta. Imaginava um homem que se dirigisse a ela somente com palavras que nunca usei, que tivesse o cuidado de tocar a pele dela onde eu jamais tocava. Um homem que se deitasse com ela sem tomar o meu lugar, um homem que se contentasse em ser o que eu não era. De tal modo que Matilde pensaria em mim sempre que olhasse em torno dele, e em sonhos nos visse os dois ao mesmo tempo, sem compreender quem era a sombra de quem. E ao despertar, talvez só se lembrasse vagamente de ter sonhado com o desenho das ondas em preto-e-branco, no mosaico da calçada de Copacabana. A calçada onde em tempos ela saltitava como se jogasse amarelinha, porque não podia pisar senão nas pedras brancas. E onde eu agora caminhava trôpego, trançando as pernas, pois apenas roçasse um pé nas pretas, cairia no inferno.
Acho que o inferno era a doença de Matilde.
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O sonífero não tem mais efeito imediato, e já sei que o caminho do sono é como um corredor cheio de pensamentos. Ouço ruídos de gente, de vísceras, um sujeito entubado emite sons rascantes, talvez queira me dizer alguma coisa. O médico plantonista vai entrar apressado, tomar meu pulso, talvez me diga alguma coisa. Um padre chegará para a visita aos enfermos, falará baixinho palavras em latim, mas não deve ser comigo. Sirene na rua, telefone, passos, há sempre uma expectativa que me impede de cair no sono. É a mão que me sustém pelos raros cabelos. Até eu topar na porta de um pensamento oco, que me tragará para as profundezas, onde costumo sonhar em preto-e-branco.
Chico Buarque, Leite Derramado