Ai, palavras, ai, palavras,
que estranha potência, a vossa!
ai, palavras, ai, palavras,
sois de vento, ides no vento,
no vento que não retorna,
e, em tão rápida existência,
tudo se forma e transforma!
Sois de vento, ides no vento,
e quedais, com sorte nova!
Ai, palavras, ai, palavras,
que estranha potência, a vossa!
todo o sentido da vida
principia à vossa porta;
o mel do amor cristaliza
seu perfume em vossa rosa;
sois o sonho e sois a audácia,
calúnia, fúria, derrota…
A liberdade das almas,
ai! com letras se elabora…
E dos venenos humanos
sois a mais fina retorta:
frágil, frágil como o vidro
e mais que o aço poderosa!
Reis, impérios, povos, tempos,
pelo vosso impulso rodam…
Detrás de grossas paredes,
de leve, quem vos desfolha?
Pareceis de tênue seda,
sem peso de ação nem de hora…
e estais no bico das penas,
e estais na tinta que as molha,
e estais nas mãos dos juizes,
e sois o ferro que arrocha,
e sois barco para o exílio,
e sois Moçambique e Angola!
Ai, palavras, ai, palavras,
íeis pela estrada afora,
erguendo asas muito incertas,
entre verdade e galhofa,
desejos do tempo inquieto,
promessas que o mundo sopra…
Ai, palavras, ai, palavras,
mirai-vos: que sois, agora?
Acusações, sentinelas,
bacamarte, algema, escolta;
o olho ardente da perfídia,
a velar, na noite morta;
a umidade dos presídios,
a solidão pavorosa;
duro ferro de perguntas,
com sangue em cada resposta;
e a sentença que caminha,
e a esperança que não volta,
e o coração que vacila,
e o castigo que galopa…
Ai, palavras, ai, palavras,
que estranha potência, a vossa!
Perdão podíeis ter sido!
sois madeira que se corta,
sois vinte degraus de escada,
sois um pedaço de corda…
sois povo pelas janelas,
cortejo, bandeiras, tropa…
Ai, palavras, ai, palavras,
que estranha potência, a vossa!
Éreis um sopro na aragem…
sois um homem que se enforca!
Cecília Meireles, Romance das Palavras Aéreas