A respeito de muitos indivíduos, o mais prudente é dizer: empregarei em meu favor aquilo que não posso mudar.
É surpreendente ver até que ponto se manifesta na conversa a homogeneidade ou a heterogeneidade de espírito e de caráter entre os homens; se faz perceptível na ocasião mais corriqueira. Mesmo se a conversa for sobre as coisas mais insignificantes, uma das duas naturezas essencialmente diferentes será mais ou menos incomodada por quase todas as frases proferidas pela outra; em certos casos, uma palavra chega a fazê-la encolerizar-se.
Indivíduos de temperamentos similares, pelo contrário, sentem prontamente uma certa conformidade em tudo; e, no caso de uma grande semelhança, tal conformidade torna-se uma perfeita harmonia ou mesmo um uníssono. Assim se explica primeiramente por que os indivíduos muito vulgares são tão sociáveis e encontram tão facilmente excelente sociedade — o que denomina “pessoas boas e amáveis”.
O contrário ocorre com os homens que não são vulgares; e serão tanto menos sociáveis quanto mais distintos forem; de tal modo que, às vezes, em seu isolamento, podem sentir uma verdadeira alegria em haver descoberto em outro indivíduo uma fibra qualquer, por insignificante que seja, da mesma natureza que a sua. Porque cada qual não pode ser para outro senão o que este outro é para ele. Como as águias, os espíritos realmente superiores fazem seus ninhos nas alturas, solitários. Isso explica, em segundo lugar, como os homens de disposição similar se reúnem tão prontamente como fossem atraídos magneticamente; as almas irmãs se saúdam desde longe. Isso pode ser observado com mais frequência entre as pessoas de sentimentos baixos ou de inteligência débil, porém apenas porque esses se chamam legião; enquanto que os bons e os nobres são e se chamam as naturezas raras.
Assim, por exemplo, em alguma vasta associação, fundada com finalidades práticas, dois caras-de-pau se reconhecem mutuamente tão prontamente como se usassem um crachá, e se unem de imediato para tramar algum abuso ou alguma traição. Igualmente, suponhamos, per impossibile, uma sociedade numerosa, composta apenas de homens inteligentes e geniais, exceto por dois imbecis que também façam parte dela; esses dois se sentirão simpaticamente atraídos um pelo outro, e cada um deles se alegrará por ter encontrado ao menos um homem sensível e racional. É realmente notável testemunhar como dois homens, especialmente se foram moralmente e intelectualmente inferiores, se reconhecem à primeira vista, como anseiam profundamente unirem-se, com que amor e alegria se apressam em saudar um ao outro, como se fossem velhos amigos. Isso é tão surpreendente que nos sentimos tentados a admitir, segundo a doutrina budista da metempsicose, que já haviam sido amigos em uma vida anterior.
Não obstante, ainda no caso de grande concordância e harmonia, aquilo que mantém os homens separados e produz entre eles um desacordo temporário é a diversidade de sua disposição no momento. Em todos isso é quase invariavelmente distinto, segundo sua circunstância presente, ocupação, ambiente, estado físico, corrente atual de suas ideias etc. Isso é o que produz dissonâncias entre as personalidades mais harmoniosas. Trabalhar constantemente na correção necessária para a remoção dessa moléstia e estabelecer uma temperatura ambiente uniforme seria a conquista da cultura mais elevada. Aquilo que a uniformidade de disposição pode realizar pela comunhão social pode ser visto no fato de que os membros de uma reunião, ainda que numerosa, são levados a uma viva comunicação e a um sincero interesse com um sentimento geral de prazer assim que algo objetivo os influencia todos simultaneamente e da mesma forma, seja isso um perigo, uma esperança, uma notícia, um raro espetáculo, uma peça, uma música ou outra coisa qualquer. Porque, ao sobrepujar todos os interesses particulares, isso faz nascer a uniformidade geral de disposição. Na falta de tal influência objetiva, em regra recorre-se a qualquer meio subjetivo; desse modo, garrafas de vinhos normalmente são o meio de introduzir numa reunião uma disposição comum. Até o chá e o café sevem ao mesmo propósito.
Porém, esse mesmo desacordo, introduzido tão facilmente em qualquer reunião pela diversidade de humor momentânea, também explica parcialmente por que todos aparecem idealizados e às vezes até transfigurados na memória quando não se está sob o domínio dessa influência perturbadora temporária. A memória age como a lente convexa de uma câmera obscura; reduz todas as dimensões e, assim, produz uma imagem muito mais bela que a original. Cada ausência nos proporciona, em certo grau, a vantagem de sermos vistos sob esse aspecto. Pois, ainda que a idealização da memória exija um tempo considerável para realizar seu trabalho, sua ação começa imediatamente. Por isso, é até prudente nos apresentarmos aos nossos amigos e conhecidos apenas após um longo intervalo de tempo; pois então, ao vê-los novamente, notaremos que a memória já fez seu trabalho. Ninguém pode ver acima de si mesmo; quero dizer com isso que todos veem nos demais apenas aquilo se é em si mesmo; porque cada qual não pode apreender e compreender o outro senão na medida de sua própria inteligência. Se essa é da espécie mais ínfima, nenhum dote intelectual, nem mesmo o mais elevado, lhe impressionará de modo algum; e não observará naquele que o possui nada além dos elementos mais vis em sua natureza individual, isto é, apenas suas fraquezas e todos os seus defeitos de temperamento e de caráter.
E disso estará composto o grande homem aos olhos do homem vulgar; suas faculdades intelectuais mais eminentes não existem para o outro, como não existem as cores para o cego. Isso porque o maior talento é invisível para aquele que não possui nenhum; e qualquer valor concedido a uma obra é o produto do valor da obra em si e do alcance do conhecimento daquele que profere sua opinião. Daí resulta que somos reduzidos ao nível de todos aqueles com quem falamos, visto que todas as vantagens que possuímos desaparecem, e mesmo a abnegação de si mesmo necessária para tal permanece completamente ignorada. Se refletirmos sobre quão profundamente vulgares e inferiores, sobre quão completamente medíocres são as pessoas em sua maioria, veremos que é impossível falar com elas sem nos tornamos igualmente medíocres durante esse intervalo (por analogia com a transmissão da eletricidade). Se compreenderá então o significado próprio e a verdade desta expressão alemã: sich gemein machen [parear-se com o companheiro]; e de bom grado evitaremos a companhia daqueles com os quais não podemos nos comunicar senão mediante a partie honteuse [a parte vergonhosa] de nossa natureza. Se compreenderá igualmente que, na presença de tolos e de insensatos, não há mais que uma maneira de demonstrar inteligência: não lhes dirigir a palavra. Porém, é verdade que muitos na sociedade poderão se sentir como um dançarino que foi a um baile onde não há senão aleijados; com quem dançará? Concedo toda a minha consideração — como a um eleito entre cem — àquele que, estando desocupado, porque espera algo, não se põe imediatamente a golpear ou a batucar com a primeira coisa que lhe vem às mãos, seja com sua bengala, com seu garfo e faca ou com qualquer outro objeto. É provável que esse homem esteja pensando em algo. Por outro lado, é evidente que em muitas pessoas o observar substitui completamente o pensar. Tratam de assegurar sua existência fazendo barulho, a não ser que tenham um cigarro em mãos, que lhes serve ao mesmo propósito. Pela mesma razão, são todos olhos, todos ouvidos para tudo o que passa ao seu redor.
Arthur Schopenhauer, Aforismos para a sabedoria de vida