sábado, 11 de março de 2023

A sociedade do espetáculo

 

Os anarquistas têm um ideal a realizar. O anarquismo é a negação ainda ideológica do Estado e das classes, isto é, das próprias condições sociais da ideologia separada. É a ideologia da pura liberdade que iguala tudo e que afasta toda a ideia do mal histórico. Este ponto de vista da fusão de todas as exigências parciais deu ao anarquismo o mérito de representar a recusa das condições existentes no conjunto da vida, e não em torno de uma especialização crítica privilegiada, mas esta fusão, ao ser considerada no absoluto, segundo o capricho individual, antes da sua realização efetiva condenou também o anarquismo a uma incoerência demasiado fácil de constatar. O anarquismo não tem senão a redizer e a repor em jogo, em cada luta, a sua simples conclusão total, porque esta primeira conclusão era desde a origem identificada com a concretização integral do movimento. Bakunin podia pois escrever em 1873, ao abandonar a Federação do Jura: "Nos últimos nove anos desenvolvemos no seio da Internacional mais ideias do que o necessário para salvar o mundo, se só por si as ideias pudessem salvá-lo, e desafio quem quer que seja a inventar uma nova. O tempo já não está para ideias, mas para fatos e atos". Sem dúvida, esta concepção conserva do pensamento histórico do proletariado a certeza de que as ideias devem tornar-se práticas, mas ela abandona o terreno histórico ao supor que as formas adequadas a esta passagem à prática já estão encontradas e não variarão mais.

Os anarquistas, que se distinguem explicitamente do conjunto do movimento operário pela sua convicção ideológica, vão reproduzir entre si esta separação das competências, ao fornecer um terreno favorável à dominação informal, sobre toda a organização anarquista, dos propagandistas e defensores da sua própria ideologia, especialistas, em regra geral, tanto mais medíocres quanto a sua atividade intelectual se reduz principalmente à repetição de algumas verdades definitivas. O respeito ideológico da unanimidade na decisão favoreceu antes a autoridade incontrolada, na própria organização, de especialistas da liberdade; e o anarquismo revolucionário espera do povo libertado o mesmo gênero de unanimidade, obtida pelos mesmos meios. De resto, a recusa de considerar a oposição das condições entre uma minoria agrupada na luta atual e a sociedade dos indivíduos livres alimentou uma permanente separarão dos anarquistas no momento da decisão comum, como o mostra o exemplo de uma infinidade de insurreições anarquistas na Espanha, limitadas e esmagadas num plano local.

A ilusão, sustentada mais ou menos explicitamente no anarquismo autêntico, é a iminência permanente de uma revolução que deverá dar razão à ideologia, e ao modo de organização prático derivado da ideologia, ao realizar-se instantaneamente.

O anarquismo conduziu realmente, em 1936, uma revolução social e o esboço, o mais avançado de sempre, de um poder proletário. Nesta circunstância, é preciso ainda notar, por um lado, que o sinal de uma insurreição geral tinha sido imposto pelo pronunciamento do exército. Por outro lado, na medida em que esta revolução não tinha sido concluída nos primeiros dias, pela existência de um poder franquista em metade do país, apoiado fortemente pelo estrangeiro no momento em que o resto do movimento proletário internacional já estava vencido, e pela sobrevivência das forças burguesas ou de outros partidos operários estatalistas no campo da República, o movimento anarquista organizado mostrou-se incapaz de alargar as meias-vitórias da revolução, e até mesmo de as defender. Os seus chefes reconhecidos tornaram-se ministros e reféns do Estado burguês que destruía a revolução para perder a guerra civil.

Guy Debord, a Sociedade do Espetáculo