domingo, 12 de março de 2023

A Montanha Mágica

Claude Monet

De que falava, afinal, o Dr. Krokowski? Que tema estava desenvolvendo? Hans Castor procurou concentrar seu espírito, a fim de apanhar o fio da palestra, porém não o conseguiu imediatamente, visto não ter ouvido o princípio e ter perdido ainda outras passagens, depois, ao refletir acerca das costas lassas de Mme Chauchat. Tratava-se de uma potência... daquela potência... Numa palavra, tratava-se da potência do amor, “Liebe”. Claro! O assunto estava indicado pelo título geral do ciclo de conferências, e de que mais poderia falar o Dr. Krokowski, desde que esta era a sua especialidade? Verdade é que parecia um tanto estranho a Hans Castorp assistir, assim subitamente, a uma preleção sobre o amor, já que os cursos que ele seguira antes haviam-se ocupado apenas de assuntos como a transmissão de rodas denteadas nas construções náuticas. Como se arranjava o conferencista para expor em pleno dia, a um público de cavalheiros e senhoras, um assunto de natureza tão confidencial e espinhosa? O Dr. Krokowski expunha-o num linguajar misto, entre poético e erudito, rigorosamente científico e, ao mesmo tempo, vibrante como um hino. Esse tom despertava no jovem Hans Castorp a impressão de uma certa falta de ordem, mas talvez fosse justamente ele o que esquentava as faces das damas e fazia os senhores cocarem as orelhas Em particular, o orador empregava o termo “Liebe” num sentido levemente ambíguo, de modo que nunca ficava claro o que se devia pensar das suas palavras, nem se elas se referiam a um sentimento piedoso ou a uma paixão carnal; vacilação que produzia uma espécie de enjoo. Nunca na vida ouvira Hans Castorp pronunciar esse vocábulo tantas vezes seguidas como nessa hora e nesse lugar, e ao refletir sobre esse fato, até achava que ele próprio jamais se servira dessa palavra e nem a ouvira de boca estranha. Talvez estivesse errado, mas, em todo caso, não lhe parecia que o vocábulo “Liebe” ganhasse com tanta repetição.

Pelo contrário, essa sílaba e meia, já em si um tanto escabrosa, com as consoantes lingual e labial, e com a vogal balante no meio, acabou por se lhe tornar bastante repelente. Ligava-se a ela uma representação parecida com leite aguado, qualquer coisa entre branco e azulado, tanto mais insípida em comparação com todas as ideias vigorosas que o Dr. Krokowski estava apresentando a seu respeito. Pois era evidente que, na forma que ele usava, podiam-se dizer coisas bem fortes sem que o público saísse da sala. Absolutamente não se limitava a discutir, com uma espécie de tato inebriante, assuntos comumente conhecidos, mas nos quais a maioria das pessoas prefere não tocar. Destruía ilusões; implacavelmente fazia prevalecer o conhecimento; não deixava espaço para a fé sentimental na dignidade dos cabelos prateados ou na pureza angélica da criança tenra. Trazia, aliás, com a sobrecasaca, o mesmo tipo de colarinho amplo e as sandálias por cima das meias cinzentas, o que dava uma impressão de idealismo e princípios firmes, se bem que Hans Castorp se assustasse um pouco com esse aspecto. Valendo-se de livros e folhas soltas, espalhadas sobre a mesa, documentava o Dr. Krokowski as suas exposições por meio de toda espécie de paradigmas e anedotas, chegando até, às vezes, a recitar versos. Discursava acerca das formas tenebrosas do amor e das variedades excêntricas, dolorosas e sinistras, da sua índole e da sua onipotência. Entre todos os instintos existentes na natureza – disse ele – era o amor o mais vacilante e o mais ameaçado, fundamentalmente propenso à aberração e à perversão fatal. Nesse fato não havia nada de surpreendente, uma vez que esse impulso poderoso não era uma coisa simples, senão que infinitamente composta por natureza. Por mais legítimo que ele parecesse no seu conjunto, o que o compunha era justamente uma série de perversões. Mas, desde que acertadamente – assim continuou o conferencista –, desde que com muita razão se negava que do absurdo das partes fosse deduzido o absurdo do todo, era inevitável a conclusão que atribuía parte daquela legitimidade do todo, senão toda ela, também à perversão que compunha esse todo.

Era isso uma exigência da lógica, da qual, segundo o orador, os ouvintes deviam compenetrar-se. Havia resistências íntimas e corretivos psíquicos, instintos decentes e coordenadores, de um caráter que o Dr. Krokowski quase se sentia tentado a qualificar de burguês, e sob o efeito compensador e restritivo desses instintos as partes perversas eram fundidas num todo útil e irrepreensível; processo frequente e simpático, cujo resultado, porém (como o orador acrescentou com certo desdém), não tinha nenhuma importância para o médico e o filósofo. Em outros casos, entretanto, malograva o referido processo; não havia jeito de levá-lo a bom termo. E quem – assim perguntou o Dr. Krokowski -seria capaz de dizer se esses últimos casos não eram os mais nobres, os psicologicamente mais valiosos? Existia então uma tensão extraordinária, uma paixão que ultrapassava as medidas habituais, burguesas, e essa tensão se fazia sentir entre os dois grupos de forças que eram a necessidade de amor e os impulsos contrários, dentre os quais cumpria mencionar a vergonha e o asco. Travada nos abismos da alma, essa luta impedia, nos ditos casos, que os instintos extraviados chegassem a ser abrigados, protegidos e moralizados, daquele modo que conduzia à harmonia usual e à vida erótica regular. E como terminava esse combate – pois tratava-se de um combate – entre as potências da castidade e do amor? Terminava, aparentemente, com a vitória da castidade. O medo, as conveniências, a repugnância pudica, o trêmulo desejo de pureza – todos eles oprimiam o amor, mantinham-no agriIhoado, nas trevas, davam acesso à consciência e à atividade, quando muito a uma parte, jamais, porém, ao todo múltiplo e vigoroso das suas reivindicações confusas. No entanto, essa vitória da castidade não era mais que aparente, não passava de uma vitória de Pirro, pois a potência do amor não se deixava reprimir nem violentar, o amor oprimido não estava morto, não; vivia, continuava, nas revas, no mais profundo segredo, a almejar a sua realização, rompia o círculo mágico da castidade e ressurgia, ainda que sob forma metamorfoseada, dificílima de reconhecer... E qual era, afinal, a forma e a máscara que usava o amor vedado e oprimido na sua reaparição? Assim perguntou o Dr. Krokowski, e deixou o seu olhar passar ao longo das filas, como se esperasse seriamente uma resposta dos seus ouvintes. Ora, essa resposta teria de ser dada por ele mesmo, que já dissera tantas outras coisas. Ninguém, exceto ele, sabia-a; mas ele não falharia, isso se notava na sua expressão. Com os seus olhos ardentes, sua palidez de cera, sua barba negra, e as sandálias de monge por cima das meias de lã cinzenta, parecia simbolizar, na sua própria pessoa, aquela luta entre a castidade e a paixão de que acabava de falar. Ao menos era essa a impressão de Hans Castorp, enquanto, como todos os demais, esperava com suma curiosidade ficar sabendo sob que forma voltava o amor rechaçado. As mulheres mal se atreviam a respirar. O Promotor Paravant mais uma vez coçou a orelha, para que, no instante decisivo, ela se tornasse aberta e acolhedora. Eis o que disse o Dr. Krokowski:

– Sob a forma de doença. O sintoma da doença nada é senão a manifestação disfarçada da potência do amor; e toda doença é apenas amor transformado.

Agora sabiam o segredo, se bem que nem todos fossem capazes de apreciá-lo devidamente. Um suspiro percorreu a sala, e o Promotor Paravant meneou a cabeça num gesto significativo de aprovação, enquanto o Dr. Krokowski prosseguia desenvolvendo a sua tese.

Hans Castorp, por sua vez, baixou a cabeça, a fim de refletir sobre o que ouvira e de perguntar-se a si próprio se compreendera. Mas ele tinha pouca prática nesse tipo de exercícios mentais e, além disso, pouca presença de espírito, devido àquele passeio infeliz. Assim, sua atenção distraía-se facilmente, e de fato se concentrou logo nas costas de Mme.. Chauchat, que ele via à sua frente, bem como no braço que se elevava e inclinava para trás, para que a mão, diante dos olhos de Hans Castorp, sustentasse, de baixo, os cabelos em trança.

Era angustiante ter essa mão tão perto dos olhos. Quisesse ele ou não, tinha de olhá-la, estudá-la com todos os defeitos e particularidades humanas que lhe eram inerentes, como se ela estivesse sob uma lente. Não, não havia nada de aristocrático nessa curta mão de colegial, com as unhas aparadas de qualquer jeito. Nem sequer se tinha certeza de que estivesse perfeitamente limpa nos nós dos dedos, e a pele ao lado das unhas estava roída – a esse respeito não existia a menor dúvida. Hans Castorp fez uma careta, e todavia os seus olhos continuaram fixos na mão de Mme.. Chauchat. Passou-lhe pelo cérebro uma vaga e incompleta lembrança daquilo que dissera o Dr. Krokowski sobre as resistências burguesas que se opunham ao amor... O braço era  mais belo, esse braço suavemente dobrado atrás da cabeça, e quase desnudo, já que a fazenda das mangas, uma levíssima cambraia, era mais fina do que a da blusa, de maneira que apenas propiciava uma espécie de vaporosa auréola ao braço, que sem ela talvez fosse menos gracioso.

Era ele ao mesmo tempo delicado, gordo e -segundo todas as probabilidades – frio ao tato. No que lhe dizia respeito, absolutamente não entravam em ação as referidas resistências burguesas. Hans Castorp sonhava, os olhos fitos no braço de Mme.. Chauchat. Como se vestiam essas mulheres! Mostravam isso e aquilo da nuca e do peito; glorificavam os braços por meio de gaze transparente... Agiam assim em todo o mundo para excitar o desejo ansioso dos homens.

Deus do Céu, que bela era a vida! Era bela justamente pela naturalidade com que as mulheres se vestiam de um modo tão sedutor; pois isso era mesmo natural e de tal forma comum, tão geralmente admitido, que a gente mal o notava e o tolerava inconscientemente, sem fazer grande caso. Mas cumpria pensar nisso – ponderou Hans Castorp – para encontrar um genuíno prazer na vida e não se esquecer que tal modo de trajar era uma instituição deliciosa e, no fundo, quase feérica. Claro que havia uma finalidade definida no fato de as mulheres terem o direito de se vestir dessa forma maravilhosa e mágica, sem que, com isso, infringissem as regras da decência: tratava-se da próxima geração, da procriação da raça humana; sim, senhor! Mas quando a mulher estava interiormente enferma, quando não era, de maneira alguma, apta para a maternidade – que dizer então? Haveria ainda algum sentido no uso de mangas de gaze que despertassem a curiosidade dos homens quanto a um corpo interiormente carcomido? Era evidente que isso era absurdo e deveria ser considerado pouco correto e até mesmo proibido. Pois no interesse de um homem por uma mulher enferma havia tão pouco sentido quanto... bem, quanto houvera naquele interesse silencioso que Hans Castorp sentira por Pribislav Hippe. Essa comparação não deixava de ser estúpida, e a reminiscência, um tanto penosa. Mas elas se haviam apresentado espontaneamente, sem que ninguém as chamasse. De resto, os seus sonhos foram interrompidos nesse ponto, sobretudo porque a sua atenção se sentiu novamente atraída pelo Dr. Krokowski, cuja voz se elevara de forma impressionante. Realmente, lá atrás da mesinha estava ele, com os braços abertos e a cabeça obliquamente inclinada, e apesar da sobrecasaca parecia-se com um Cristo na cruz!

Patenteou-se que o Dr. Krokowski, pelo fim da sua conferência, fazia intensa propaganda a favor da dissecação das almas, e com os braços abertos convidava todo mundo para vir a ele. Vinde a mim todos os que estão aflitos e carregados de culpa, disse o orador, embora com outras palavras. E não deixou nenhuma dúvida quanto à sua convicção conforme a qual todos, sem exceção, estavam nessas condições. Falou ainda do sofrimento oculto, do pudor e da mágoa, e dos efeitos benfazejos da análise; celebrou a iluminação do inconsciente, preconizou a reconversão da doença em um sentimento consciente, exortou à confiança e prometeu a cura. A seguir deixou cair os braços, ergueu a cabeça, juntou a papelada de que se servira durante a conferência, apanhou a pilha com a mão esquerda, e apertando-a ao ombro direito, com um gesto tipicamente professoral, afastou-se pelo corredor.

Todos se levantaram, empurrando as cadeiras para trás, e começaram a dirigir-se lentamente para a mesma saída pela qual o doutor abandonara a sala. Era como se todos, num movimento concêntrico, convergissem para ele, de todos os lados, hesitantes, involuntariamente, e todavia numa unanimidade surda, como a multidão que seguia atrás do flautista de Hamelin.

Hans Castorp permaneceu parado no meio da torrente, agarrando com a mão o espaldar da sua cadeira. “Estou aqui só de visita”, pensou. “Ando bem de saúde e, graças a Deus, essas coisas não me dizem respeito. Quando se realizar a próxima conferência, já não estarei aqui...” Viu como Mme.. Chauchat saía a passo arrastado, com a cabeça caída para a frente. “Será que ela também se submete ao bisturi do analista?”, pensou, enquanto o seu coração se punha a martelar...


Thomas Mann, A Montanha Mágica