sexta-feira, 6 de maio de 2022

 Catherine Pelle

 
Guarda tu agora o que eu, subitamente, perdi 

talvez para sempre ― a casa e o cheiro dos livros, 

a suave respiração do tempo, palavras, a verdade, 

camas desfeitas algures pela manhã, 

o abrigo de um corpo agitado no seu sono. Guarda-o 


serenamente e sem pressa, como eu nunca soube. 

E protege-o de todos os invernos ― dos caminhos 

de lama e das vozes mais frias. Afaga-lhe 

as feridas devagar, com as mãos e os lábios, 

para que jamais sangrem. E ouve, de noite, 

a sua respiração cálida e ofegante 

no compasso dos sonhos, que é onde esconde 

os mais escondidos medos e anseios. 


Não deixes nunca que se ouça sozinho no que diz 

antes de adormecer. E depois aguarda que, 

na escuridão do quarto, seja ele a abraçar-te, 

ainda que não te tenha revelado uma só vez o que queria. 


Acorda mais cedo e demora-te a olhá-lo à luz azul 

que os dias trazem à casa quando são tranquilos. 

E nada lhe peças de manhã ― as manhãs pertencem-lhe; 

deixa-o a regar os vasos na varanda e sai, 

atravessa a rua enquanto ainda houver sol. E assim 

haverá sempre sol e para sempre o terás, 

como para sempre o terei perdido eu, subitamente, 

por assim não ter feito.


Maria do Rosário Pedreira