sexta-feira, 13 de maio de 2022

A guerra não tem rosto de mulher

 

a guerra não tem rosto de mulher

O ser humano é maior que a

guerra

(Do diário do livro)


Milhões de assassinados por nada

Abriram um caminho na escuridão

Óssip Mandelstam 1978-85


Estou escrevendo um livro sobre a guerra…

Eu, que nunca gostei de ler livros de guerra, ainda que, durante minha infância e juventude, essa fosse a leitura preferida de todo mundo. De todo mundo da minha idade. E isso não surpreende — éramos filhos da Vitória. Filhos dos vencedores. Qual é minha primeira lembrança da guerra? Minha tristeza infantil entre palavras assustadoras e incompreensíveis. Estavam sempre relembrando a guerra: na escola e em casa, nos casamentos e batizados, nos feriados e velórios. Até nas conversas das crianças. Um menino da vizinhança uma vez me perguntou: “O que as pessoas fazem embaixo da terra? Como eles vivem lá?”. Nós também queríamos decifrar o mistério da guerra.

Foi então que comecei a refletir sobre a morte… E nunca mais parei de pensar nela, tornou-se para mim o principal mistério da vida. Para nós, tudo começava naquele mundo distante e misterioso. Em nossa família, meu avô ucraniano, pai da minha mãe, morreu no front, foi enterrado em algum lugar em terras húngaras; minha avó bielorrussa, mãe do meu pai, morreu de tifo entre os partisans; de seus três filhos, dois serviram no Exército e desapareceram nos primeiros meses da guerra, só um voltou. Meu pai. Onze parentes distantes, junto com os filhos, foram queimados vivos pelos alemães — uns em sua casa, outros na igreja da vila. Em todas as famílias acontecia o mesmo. Em todas. Os meninos das aldeias ainda por muito tempo brincaram de “alemães” e “russos”. Gritavam palavras em alemão: “Hände hoch!”, “Zurück”, “Hitler kaput!”.*

Não sabíamos como era o mundo sem guerra, o mundo da guerra era o único que conhecíamos, e as pessoas da guerra eram as únicas que conhecíamos. Até agora não conheço outro mundo, outras pessoas. Por acaso existiram em algum momento? A vila de minha infância depois da guerra era feminina. Das mulheres. Não me lembro de vozes masculinas. Tanto que isso ficou comigo: quem conta a guerra são as mulheres. Choram. Cantam enquanto choram.

Na biblioteca da escola, metade dos livros era sobre a guerra. Tanto na biblioteca rural quanto na do distrito, onde meu pai sempre ia pegar livros. Agora, tenho uma resposta, um porquê. Como ia ser por acaso? Estávamos o tempo todo em guerra ou nos preparando para ela. E rememorando como combatíamos.

Nunca tínhamos vivido de outra forma, talvez nem saibamos como fazer isso. Não imaginamos outro modo de viver, teremos que passar um tempo aprendendo.

Na escola, nos ensinavam a amar a morte. Escrevíamos redações dizendo como queríamos morrer em nome de… Sonhávamos com isso…

Mas as vozes na rua gritavam outras coisas, me atraíam mais.

Por muito tempo fui uma pessoa dos livros: a realidade me assustava e atraía. Desse desconhecimento da vida surgiu uma coragem. Agora penso: se eu fosse uma pessoa mais ligada à realidade, teria sido capaz de me lançar nesse abismo? De onde veio tudo isso: do desconhecimento? Ou foi uma intuição do caminho? Pois a intuição do caminho existe…

Passei muito tempo procurando… Com que palavras seria possível transmitir o que escuto? Procurava um gênero que respondesse à forma como vejo o mundo, como se estruturam meus olhos, meus ouvidos.

Uma vez, veio parar em minhas mãos o livro Ia iz ógnennoi deriévni [Eu venho de uma vila em chamas], de Aliés Adamóvitch, Iánka Bril e Vladímir Koliésnik. Só tinha sentido essa estupefação uma vez, ao ler Dostoiévski. Tinha uma forma incomum: um romance constituído a partir de vozes da própria vida, do que eu escutara na infância, do que agora se escuta na rua, em casa, no café, no trólebus. É isso! O círculo se fechou. Achei o que estava procurando. O que estava pressentindo.

Aliés Adamóvitch tornou-se meu professor…

Durante dois anos, mais do que fazer entrevistas e tomar notas, eu fiquei pensando. Lendo. Sobre o que será meu livro? Ah, mais um livro sobre a guerra… Para quê? Já aconteceram milhares de guerras — pequenas e grandes, famosas e desconhecidas. E o que se escreveu sobre elas é ainda mais numeroso. Mas… Foi escrito por homens e sobre homens, isso ficou claro na hora. Tudo o que sabemos da guerra conhecemos por uma “voz masculina”. Somos todos prisioneiros de representações e sensações “masculinas” da guerra. Das palavras “masculinas”. Já as mulheres estão caladas. Ninguém, além de mim, fazia perguntas para minha avó. Para minha mãe. Até as que estiveram no front estão caladas. Se de repente começam a lembrar, contam não a guerra “feminina”, mas a “masculina”. Seguem o cânone. E só em casa, ou depois de derramar alguma lágrima junto às amigas do front, elas começam a falar da sua guerra, que eu desconhecia. Não só eu, todos nós. Em minhas viagens jornalísticas, mais de uma vez fui testemunha, a única ouvinte de textos absolutamente novos. E experimentava um espanto igual ao de minha infância. Nesses relatos transparecia o esgar monstruoso do mistério… Quando as mulheres falam, não aparece nunca, ou quase nunca, aquilo que estamos acostumados a ler e escutar: como umas pessoas heroicamente mataram outras e venceram. Ou perderam. Qual foi a técnica e quais eram os generais. Os relatos femininos são outros e falam de outras coisas. A guerra “feminina” tem suas próprias cores, cheiros, sua iluminação e seu espaço sentimental. Suas próprias palavras. Nela, não há heróis nem façanhas incríveis, há apenas pessoas ocupadas com uma tarefa desumanamente humana.

E ali não sofrem apenas elas (as pessoas!), mas também a terra, os pássaros, as árvores. Todos os que vivem conosco na terra. Sofrem sem palavras, o que é ainda mais terrível.

Mas por quê? — perguntei-me mais de uma vez. — Por que, depois de defender e ocupar seu lugar em um mundo antes absolutamente masculino, as mulheres não defenderam sua história?

Suas palavras e seus sentimentos? Não deram crédito a si mesmas. Um mundo inteiro foi escondido de nós. A guerra delas permaneceu desconhecida…

Quero escrever a história dessa guerra. A história das mulheres.

* * *

Depois dos primeiros encontros… O espanto: mulheres que tiveram profissões militares — enfermeira-instrutora, francoatiradora, atiradora de metralhadora, comandante de canhão antiaéreo, sapadora — agora são contadoras, auxiliares de laboratório, guias turísticas, professoras de escola… Os papéis lá e cá não combinam. Recordam como se não estivessem falando de si mesmas, mas de outras garotas. Hoje, se espantam consigo. E aos meus olhos a história vai “se humanizando”, ficando mais parecida com a vida comum. Surge outra interpretação.

Encontram-se narradoras formidáveis, elas têm páginas na vida que rivalizam com as melhores páginas dos clássicos. O ser humano vê a si mesmo com tanta clareza de cima — a partir do céu —, e de baixo — a partir da terra. Diante dele há todo um caminho para cima e para baixo: de anjo a animal. As lembranças não são um relato apaixonado ou desapaixonado de uma realidade que desapareceu, mas um renascimento do passado, quando o tempo se volta para trás. Antes de mais nada, é uma criação. Ao contar, as pessoas criam, “escrevem” sua vida. Acontece inclusive de “acrescentarem” e “reescreverem” passagens. Quanto a isso, é preciso ficar alerta. De guarda. Ao mesmo tempo a dor funde e aniquila qualquer falseamento. A temperatura é alta demais! Os mais sinceros, estou convencida, são as pessoas simples — enfermeiras, cozinheiras, lavadeiras… Elas — como definir com mais precisão? — tiram as palavras de si mesmas, e não dos jornais ou dos livros que leram, não do que é alheio. Apenas dos próprios sofrimentos e emoções. Os sentimentos e a linguagem das pessoas cultas, por mais estranho que pareça, estão mais sujeitos a ser reelaborados pelo tempo. Pela codificação geral. Contaminados pelo conhecimento indireto. Pelos mitos. Às vezes, é preciso percorrer um longo caminho, dar várias voltas, para escutar um relato da guerra “feminina”, e não da “masculina”; como foi a retirada, o ataque, em que lugar do front… Exige não só um encontro, mas várias sessões. Como um retratista insistente.

Passo muito tempo sentada em casas ou apartamentos desconhecidos, às vezes o dia inteiro. Bebemos chá, experimentamos blusinhas recém-compradas, discutimos cortes de cabelo e receitas. Olhamos juntas as fotos dos netos. E então… Depois de certo tempo, nunca se sabe quanto nem por quê, de repente chega aquele esperado momento em que a pessoa se afasta do cânone — feito de gesso e concreto armado, como nossos monumentos — e se volta para si. Para dentro de si. Começa a lembrar não da guerra, mas de sua juventude. De um pedaço da sua vida… É preciso capturar esse momento. Não deixar passar! Mas, muitas vezes, depois de um dia longo, cheio de palavras, fatos, lágrimas, só resta uma frase na memória (mas que frase!): “Eu era tão pequena quando fui para o front que, durante a guerra, até cresci um pouco”. Eu a deixo no bloquinho de anotações, apesar de voltar com dezenas de metros de fita no gravador. Quatro ou cinco fitas cassete…

O que me ajuda? O que me ajuda é estarmos acostumadas a viver juntas. Em comunidade. Somos gente da comunhão. Tudo entre nós acontece na presença dos outros — tanto as alegrias quanto as lágrimas. Somos capazes de sofrer e contar o sofrimento. O sofrimento justifica nossa vida dura e sem graça. Para nós, a dor é uma arte. É preciso reconhecer que as mulheres se lançam nesse caminho com coragem…

* * *

Como elas me recebem?

Me chamam de “menina”, “filhinha”, “mocinha”; se eu fosse da mesma geração que elas, talvez se comportassem de outra forma. Com tranquiladade, de igual para igual. Sem a alegria e a surpresa que acompanham o encontro entre juventude e velhice.

Este é um elemento muito importante: na época elas eram jovens e agora se lembram disso na velhice. Estão lembrando depois de uma vida — depois de quarenta anos. Me revelam seu mundo com cuidado, preservando-se: “Me casei logo depois da guerra.

Me escondi atrás do meu marido. Atrás do dia a dia, das fraldas das crianças. Me escondi com gosto. Minha mãe também me pedia: ‘Fique calada! Fique calada! Não confesse’. Cumpri meu dever perante a pátria, mas fico triste de ter estado lá. De conhecer aquilo… E você é tão mocinha. Fico com pena de você…”. Muitas vezes reparo em como elas estão escutando a si mesmas. O som de sua alma. Conferindo-o com suas palavras. Depois de longos anos, a pessoa entende que aquilo era a vida, e que agora é preciso fazer as pazes e se preparar para a partida. Contra a vontade e com pena de desaparecer assim sem mais nem menos. Sem cuidado. Na caminhada. E, ao voltar o olhar para trás, nele está presente não só o desejo de contar sua história, mas também de alcançar o mistério da vida. Responder para si mesma à pergunta: para que aconteceu tudo isso? Elas olham para tudo com o olhar triste, de quem se despede um pouco… Quase do lado de lá… Não há por que enganar os outros e enganar a si mesmas. Elas já entenderam que, sem a ideia de morte, não se pode distinguir nada no ser humano. Seu mistério existe acima de tudo.

A guerra é um sofrimento íntimo demais. E tão infinito quanto a vida humana…

Certa vez, uma mulher que havia sido piloto recusou-se a se encontrar comigo. Por telefone, explicou: “Não posso… Não quero lembrar. Passei três anos na guerra… E, nesses três anos, não me senti mulher. Meu organismo perdeu a vida. Eu não menstruava, não tinha quase nenhum desejo feminino. E era bonita…

Quando meu futuro marido me pediu em casamento… Isso já em Berlim, ao lado do Reichstag… Ele disse: ‘A guerra acabou.

Sobrevivemos. Tivemos sorte. Case comigo’. Eu queria chorar.

Começar a gritar. Bater nele! Como assim casar? Agora? No meio de tudo isso — casar? No meio da fuligem preta, de tijolos pretos… Olhe para mim… Veja em que estado estou! Primeiro, faça de mim uma mulher: me dê flores, flerte comigo, diga palavras bonitas. Eu quero tanto isso! Esperei tanto! Por pouco não bati nele… Queria bater… Uma de suas bochechas estava queimada, vermelha, e eu vi que ele tinha entendido tudo: desciam lágrimas por essa bochecha. Pelas cicatrizes ainda recentes… E eu mesma não acreditei que estava dizendo: ‘Sim, eu me caso com você’.

“Desculpe… Não posso…”

Eu a entendi. Mas isso também é uma página ou meia do futuro livro.

Textos, textos. Textos para todo lado. Nos apartamentos da cidade e nas casas do campo, na rua e no trem… Vou escutando… Cada vez mais vou me transformando em um grande ouvido, sempre voltado para outra pessoa. “Leio” a voz.

O ser humano é maior do que a guerra…

A memória guarda justamente os momentos em que ele foi maior. Ali, ele é guiado por algo mais forte do que a história. Preciso pegar o que é mais amplo — escrever a verdade sobre a vida e a morte em geral, e não só a verdade sobre a guerra. Fazer a pergunta de Dostoiévski: o quanto há de humano no ser humano, e como proteger esse humano em si? Sem dúvida, o mal é tentador. Ele é mais hábil do que o bem. Mais atraente. Mergulho cada vez mais fundo no infinito mundo da guerra, todo o resto perde um pouco das cores, torna-se mais comum do que o comum. Um mundo grandioso e feroz. Entendo agora a solidão da pessoa que volta de lá. É como se viesse de outro planeta ou do além. Ela tem o conhecimento de algo que os outros não têm, e só é possível conquistá-lo ali, perto da morte. Quando tenta transformar isso em palavras, tem a sensação de uma catástrofe. A pessoa se cala. Ela quer contar, o resto queria entender, mas estão todos impotentes.

O espaço delas é sempre diferente do de seus ouvintes. Estão rodeadas por um mundo invisível. Pelo menos três pessoas fazem parte da conversa: a que está contando agora, a pessoa que ela era na época em que aconteceu e eu. Meu objetivo é, antes de mais nada, extrair a verdade daqueles anos. Daqueles dias. Sem falsear os sentimentos. Logo depois da guerra, a pessoa contaria uma guerra; passadas dezenas de anos, claro, algo muda, porque ela deposita nas lembranças toda a sua vida. Tudo de si. Aquilo que viveu nesses anos, o que leu, viu, quem encontrou. Por fim, se é feliz ou infeliz. Se conversamos a sós ou se há mais alguém por perto. Família? Amigos — quais? Se são amigos do front, é uma coisa; se são os demais, é outra. Os documentos são seres vivos, eles mudam e vacilam junto conosco, é possível extrair algo deles eternamente. Algo novo que nos é necessário justamente agora.

Neste minuto. O que estamos procurando? Em geral, o que nos parece mais interessante e próximo não são os grandes feitos e o heroísmo, mas aquilo que é pequeno e humano. Por exemplo, o que eu mais gostaria de saber sobre a vida na Grécia antiga…

Sobre a história de Esparta… Eu gostaria de ler sobre o que as pessoas conversavam em casa. Como partiam para a guerra. Que palavras diziam no último dia e na última noite antes de se separar daqueles que amavam. Como se despediam os guerreiros. Como eram esperados na volta da guerra… Não os heróis e chefes militares, mas as pessoas comuns.

A história relatada por uma testemunha ou por um participante que ninguém notou. Sim, é isso que me interessa, é isso que eu gostaria de transformar em literatura. Mas as pessoas que contavam não eram apenas testemunhas, menos que tudo testemunhas: eram atores e criadores. É impossível chegar muito perto da realidade, cara a cara. Entre a realidade e nós existem os nossos sentimentos. Entendo que estou lidando com versões, cada um tem a sua, e delas, do volume e do cruzamento delas, nasce a imagem do tempo e das pessoas que vivem nele. Eu não gostaria que, a respeito do meu livro, dissessem: os personagens dela são reais e nada mais. Que dissessem: é a história. Apenas a história.

Não estou escrevendo sobre a guerra, mas sobre o ser humano na guerra. Não estou escrevendo a história de uma guerra, mas a história dos sentimentos. Sou uma historiadora da alma.

Por um lado, investigo o ser humano concreto, que viveu em um tempo concreto e que participou de acontecimentos concretos; por outro, preciso distinguir neles o ser humano eterno. A vibração da eternidade. Aquilo que sempre existe no ser humano.

Dizem: ah, mas memórias não são nem história, nem literatura. É só a vida, cheia de lixo e sem a limpeza feita pelas mãos do artista. Nosso cotidiano está repleto da matéria-prima da fala. Esses tijolos estão espalhados por todo lado. Mas os tijolos ainda não são o templo! Para mim é tudo diferente… Justo ali, na calidez da voz humana, no reflexo vivo do passado, está escondida uma alegria primitiva, e se desvela a intransponível tragicidade da vida.

Seu caos e paixão. Seu caráter único e insondável. Ali, eles ainda não foram submetidos a nenhuma elaboração. São originais.

Construo templos a partir de nossos sentimentos… De nossos desejos, decepções. Sonhos. Daquilo que aconteceu, mas pode sumir.

* * *

De novo sobre a mesma coisa… Me interessa não apenas a realidade que nos circunda, mas também aquela que está dentro de nós. Não me interessa o próprio acontecimento, mas o acontecimento dos sentimentos. Digamos assim: a alma do acontecimento. Para mim, os sentimentos são a realidade.

E a história? Ela está na rua. Na multidão. Acredito que em cada um de nós há um pedacinho da história. Um tem meia paginazinha, outro tem duas ou três. Juntos, estamos escrevendo o livro do tempo. Cada um grita sua verdade. O pesadelo das nuances. E é preciso ouvir tudo isso separadamente, dissolver-se em tudo isso e transformar-se em tudo isso. E, ao mesmo tempo, não perder a si mesmo. Unir o discurso da rua e da literatura. Outra complexidade está no fato de que estamos falando do passado com a língua de hoje. Como transmitir por meio dela os sentimentos daqueles dias?

De manhã, pelo telefone: “Nós não nos conhecemos… Mas eu cheguei da Crimeia, estou ligando da estação de trem. Fica longe da sua casa? Quero lhe contar minha guerra…”.

Assim?!

Eu e minha filha estávamos nos aprontando para ir ao parque. Andar no carrossel. Como explicar para uma menina de seis anos o que eu faço? Pouco tempo atrás, ela me perguntou: “O que é guerra?”. Como responder? Quero soltá-la nesse mundo com um coração terno, e ensino que não se pode arrancar uma flor sem motivo. Dá pena de esmagar uma joaninha, de arrancar a asinha de uma libélula. Como explicar a guerra a uma criança?

Como explicar a morte? E responder à pergunta: por que lá matam? Matam até os pequenos, como ela. Nós, os adultos, formamos uma espécie de complô. Entendemos do que se trata. Mas e as crianças? Depois da guerra, meus pais me explicaram de alguma forma, mas eu não consigo explicar para minha filha. Encontrar as palavras. Gostamos cada vez menos da guerra, é cada vez mais difícil encontrar uma justificativa para ela. Para nós já é apenas uma matança. Ao menos para mim.

Devia escrever um livro sobre a guerra que provoque náuseas e que faça a própria ideia de guerra parecer repugnante. Louca. Os próprios generais ficariam nauseados…

Essa lógica “feminina” deixou meus amigos baratinados (ao contrário das minhas amigas). De novo escuto o argumento “masculino”: “Você não esteve na guerra”. Talvez isso seja bom: não conheço a paixão do ódio, tenho uma visão normal. Não militar, não masculina.

Existe na óptica o conceito de “tempo de exposição” — a capacidade da objetiva de fixar melhor ou pior a imagem captada. A memória feminina sobre a guerra, em termos de concentração de sentimentos e de dor, é a que tem mais “tempo de exposição”. Eu até diria que a guerra “feminina” é mais terrível que a “masculina”. Os homens se escondem atrás da história, dos fatos, a guerra os encanta como ação e oposição de ideias, diferentes interesses, mas as mulheres são envolvidas pelos sentimentos. E mais: desde a infância, os homens são preparados para que, talvez, tenham que atirar. Não se ensina isso às mulheres… elas não se aprontaram para fazer esse trabalho… E elas lembram de outras coisas, ou lembram de outra forma. São capazes de ver o que está escondido para os homens. Vou repetir mais uma vez: a guerra delas tem cheiro, cor, o mundo detalhado da existência; “nos deram sacolas, e com elas costuramos sainhas”; “no centro de alistamento, entrei por uma porta de vestido e saí pela outra de calças e camisa militar: cortaram minha trança, na cabeça só sobrou um topetinho…”; “os alemães fuzilaram a aldeia e foram embora… Chegamos naquele lugar: areia amarela pisada e, em cima, uma botinha de criança…”. Mais de uma vez me avisaram (especialmente homens escritores): “As mulheres vão inventar para você. Vão criar”. Mas eu cheguei à conclusão: é impossível inventar isso. Copiar de alguém? Se é possível copiar isso, é só da vida; só ela tem tamanha fantasia.

Não importa de que falem as mulheres, nelas estava sempre presente a ideia de que a guerra é só uma matança, e depois, trabalho duro. E então só a vida habitual: cantavam, se apaixonavam, usavam bobes de cabelo…

No centro, sempre o fato de não querer e não aguentar morrer. E é ainda mais insuportável e angustiante matar, porque a mulher dá a vida. Presenteia. Carrega-a por muito tempo dentro de si, cria. Entendi que para as mulheres é mais difícil matar.

Os homens… A contragosto eles deixam as mulheres entrar em sua guerra, em seu território.

Fui procurar uma mulher na fábrica de tratores de Minsk; ela tinha sido franco-atiradora. E famosa. Apareceu mais de uma vez em manchetes de jornal. As amigas dela me deram o número do telefone de sua casa em Moscou, mas era antigo. Sobrenome também, eu só tinha o de solteira. Fui à fábrica onde, como eu sabia, ela trabalhava, e no departamento pessoal escutei dos homens (do diretor da fábrica e do chefe do departamento): “Por acaso falta homem para isso? Para que você quer essas histórias de mulher? Fantasias de mulher…”. Os homens tinham medo de que elas não contassem direito a guerra.

Estive com uma família… Tinham lutado o marido e a mulher. Se conheceram no front e se casaram lá mesmo: “Organizamos nosso casamento na trincheira. Antes do combate. E para costurar o vestido branco usei um paraquedas alemão”. Ele era atirador de metralhadora, ela era mensageira. O homem na hora mandou a mulher para a cozinha: “Vá cozinhar alguma coisa para a gente”. A chaleira já tinha fervido, os sanduíches já estavam preparados, ela sentou conosco, mas o marido a fez levantar ali mesmo: “Mas cadê os morangos? O nosso presentinho da datcha?”. Depois de meus pedidos insistentes, ele cedeu seu lugar a contragosto, dizendo: “Conte como eu te ensinei. Sem chorar e sem essas ninharias de mulher; que queria ser bonita, que chorou quando cortaram a trança”. Depois ela confessou para mim, sussurrando: “Ele passou a noite estudando comigo um livro de história da Grande Guerra Patriótica.* Estava com medo por mim.

E agora deve estar aflito de que não lembre direito. Não lembre do jeito certo”.

Isso aconteceu mais de uma vez, em mais de uma casa.

Sim, elas choram muito. Gritam. Depois que eu saio, tomam remédios para o coração. Chamam a “emergência”. Mas mesmo assim me pedem: “Volte. Volte sem falta. Ficamos em silêncio por tanto tempo. Quarenta anos em silêncio…”.

Entendo que o choro e o grito não devem ser trabalhados, senão o mais importante não vai ser o choro nem o grito, mas a elaboração. Em lugar de vida, vai sobrar literatura. Esse é o material, a temperatura desse material. Sempre extrapola o limite.

Uma pessoa fica mais exposta e se revela mais, acima de tudo, na guerra e, talvez, no amor. Até no que é mais profundo, até as camadas debaixo da pele. Diante da face da morte, todas as ideias empalidecem e se revela a eternidade incompreensível, para a qual ninguém está preparado. Ainda vivemos na história, e não no cosmos.

Mais de uma vez recebi o texto mandado para leitura com anotações: “Não precisa falar dessas ninharias… Escreva sobre * Nome usado na União Soviética para se referir à Segunda Guerra Mundial Nossa grande Vitória…”. Mas as ninharias eram o principal para mim — o calor e a clareza da vida: o topetinho deixado no lugar das tranças, os caldeirões quentes com mingau e sopa sem ninguém que os coma, pois de cem homens sete voltaram do combate; ou como, depois da guerra, era difícil ir à feira e olhar as barracas de carne vermelha… Até a chita vermelha… “Ah, minha querida, já se passaram quarenta anos, mas na minha casa você não encontra nada vermelho. Desde a guerra, odeio vermelho!”

Escuto a dor com atenção… A dor como prova da vida passada. Não existem outras provas, não confio em outras provas.

Mais de uma vez, as palavras nos levam para longe da verdade.

Penso no sofrimento como o grau mais alto de informação, diretamente conectado ao mistério. Ao mistério da vida. Toda a literatura russa fala disso. Nela se escreveu mais sobre o sofrimento do que sobre o amor.

E é a respeito disso que mais me contam…

O que elas são, russas ou soviéticas? Não, elas foram soviéticas — e também russas, bielorrussas, ucranianas, tadjiques…

E, apesar de tudo, ele existiu, o homem soviético. Pessoas assim, acho, não vão existir nunca mais, eles mesmos já entenderam isso. Até nós, seus filhos, somos diferentes. Queríamos ser como todo o resto. Parecidos não com nossos pais, mas com o mundo.

E o que falar sobre os netos, então…

Mas eu os amo. Eu os admiro. Eles tiveram Stálin e o gulag, mas também tiveram a Vitória. E eles sabem disso.

Há pouco tempo recebi uma carta: “Minha filha me ama muito: sou a heroína dela. Se ela ler o seu livro, vai sofrer uma grande decepção. Sujeira, piolhos, uma infinidade de sangue — tudo isso é verdade. Não nego. Mas será que a lembrança disso é capaz de dar origem a sentimentos nobres? Preparar alguém para um grande feito?”

Mais de uma vez me convenci:

… nossa memória não é nem de longe o instrumento ideal.

Ela não só é arbitrária e caprichosa como está amarrada ao tempo, como um cachorro.

… olhamos para o passado a partir de hoje, não podemos olhar de lugar nenhum.

… e, além disso, elas são apaixonadas pelo que aconteceu com elas, porque não se trata só da guerra, mas também de sua juventude. Do primeiro amor. Escuto quando elas falam… Escuto quando estão caladas…

Tanto as palavras quanto o silêncio são texto para mim. “Isso não é para pôr no livro, é para você. Os mais velhos…

Eles ficavam sentados no trem, pensativos… Tristes. Lembro que um major começou a falar comigo uma noite, quando todos estavam dormindo, sobre Stálin. Ele bebeu todas, criou coragem e confessou que seu pai já estava havia dez anos num campo de trabalho, sem direito a correspondência. Se estava vivo ou não, ninguém sabia. Esse major soltou umas palavras terríveis: ‘Quero defender a pátria, mas não quero defender esse traidor da revolução: Stálin’. Eu nunca tinha escutado essas palavras… Me assustei.

Felizmente, de manhã ele desapareceu. Deve ter ido embora…” “Te digo em segredo… Fiz amizade com Oksána, ela era da Ucrânia. Ouvi dela pela primeira vez a respeito da terrível fome na Ucrânia. Holodomor. Já não encontravam nem sapos, nem ratos: tinham comido tudo. Metade das pessoas do povoado dela tinha morrido. Morreram todos: os irmãos mais novos, o pai e a mãe, e ela se salvou porque à noite roubava estrume de cavalo do estábulo do colcoz e comia. Ninguém conseguia comer, mas ela comia: ‘Quente não entra na boca, mas quando está frio a gente consegue. Melhor congelado, tem cheiro de feno’. Eu dizia: ‘Oksána, o camarada Stálin está batalhando. Ele está acabando com os sabotadores, mas são muitos’. ‘Não’, ela respondia, ‘você é boba.

Meu pai era professor de história e me falava: ‘Um dia o camarada Stálin vai responder por seus crimes…’

“À noite, deitada, fiquei pensando: será que Oksána é uma inimiga? Uma espiã? O que fazer? Dois dias depois ela morreu em uma batalha. Não sobrou nenhum parente dela, não havia ninguém para mandar a notificação de óbito…”

Tocam nesse tema raramente e com cuidado. Até hoje estão paralisadas não só pela hipnose e pelo medo de Stálin, mas também por sua fé anterior. Ainda não conseguem deixar de amar aquilo que amavam. A coragem na guerra e a coragem de pensamento são duas coragens diferentes. E eu achava que era a mesma coisa.

O manuscrito está na gaveta há muito tempo…

Já faz dois anos que recebo recusas das editoras. Silêncio das revistas. A sentença é sempre a mesma: é uma guerra terrível demais. Muito horror. Naturalismo. Não há menção à liderança e à orientação do Partido Comunista. Em outras palavras, não é a guerra certa… E qual seria? Com generais e o sábio generalíssimo? Sem sangue e sem piolhos? Com heróis e façanhas? Mas me lembro da infância: eu andava com minha avó ao longo de um grande campo, e ela ia contando: “Depois da guerra, por muito tempo não nascia nada nesse campo. Os alemães já tinham se retirado… E aqui houvera um combate, se confrontaram por dois dias… Os mortos jaziam um ao lado do outro, como pilhas.

Como dormentes nos trilhos da estação de trem. Os alemães e os nossos. Depois da chuva, todos ficaram com cara de choro. Toda a aldeia passou um mês inteiro enterrando-os…”

Como posso me esquecer desse campo?

Não fico só anotando. Eu coleto, sigo as pistas do espírito humano, ali onde o sofrimento faz de alguém pequeno uma pessoa grandiosa. Onde a pessoa cresce. E então, para mim, ela já deixa de ser um proletariado mudo e insignificante da história.

Sua alma transparece. Mas em que consiste meu conflito com o poder? Entendi que uma grande ideia precisa de pessoas pequenas, e não de alguém grande. Para ela, o grande é supérfluo e incômodo. Dá trabalho para moldar. E é por ele que procuro. Procuro pelo pequeno grande ser humano. Humilhado, pisoteado, ofendido — ele passou pelos campos de trabalho stalinistas e pela traição, e mesmo assim venceu. Realizou um milagre.

Mas a história da guerra foi substituída pela história da Vitória.

Ele mesmo contará isso…

dezessete anos depois — 2002-4

Estou lendo meu velho diário…

Tento me lembrar da pessoa que eu era quando escrevi o livro. Aquela pessoa já não existe, assim como não existe o país em que vivíamos naquela época. O país que defendíamos e em nome do qual morríamos entre 1941 e 1945. Do outro lado da janela tudo está diferente: um novo milênio, novas guerras, novas ideias, novas armas e um russo (mais precisamente, russo-soviético) que se transformou de maneira absolutamente inesperada.

Começou a perestroika de Gorbatchóv… Meu livro foi publicado e teve uma tiragem impressionante — 2 milhões de exemplares. Era uma época em que havia muitos acontecimentos extraordinários, de novo nos lançamos furiosamente rumo a alguma coisa. Mais uma vez rumo ao futuro. Ainda não sabíamos (ou havíamos esquecido) que a revolução é sempre uma ilusão, especialmente na nossa história. Mas isso será depois; na ocasião estávamos todos embriagados pelo ar da liberdade. Comecei a receber dezenas de cartas todos os dias, minhas pastas iam engordando. As pessoas queriam falar… Dizer tudo… Ficaram mais livres e mais sinceras. Não me restava dúvida de que eu estava condenada a completar eternamente meu livro. Não reescrever, mas completar. Você põe o ponto final, e ali mesmo ele se transforma em reticências…

Acho que hoje eu faria perguntas diferentes e escutaria histórias diferentes. Eu teria escrito outro livro, não completamente diferente, mas mesmo assim outro. Os documentos (com que lido) são testemunhas vivas, eles não se solidificam como argila quando esfria. Não se calam. Eles se movimentam junto conosco.

Sobre que assuntos eu perguntaria mais agora? O que gostaria de acrescentar? Eu acharia muito interessante… estou procurando a palavra… o ser humano biológico, e não apenas aquele que é filho de uma época e de uma ideia. Eu tentaria olhar mais profundamente para a natureza humana, para a escuridão, para o subconsciente. Para o mistério da guerra.

Escreveria sobre como fui encontrar uma antiga partisan…

Uma mulher corpulenta, mas ainda bonita — e ela me contou que seu grupo (ela, que era a mais velha, e dois adolescentes) saiu para o reconhecimento de terreno e, por acaso, acabou fazendo quatro prisioneiros alemães. Passaram muito tempo rodando com eles pela floresta. Encontraram uma emboscada. Ficou claro que com os prisioneiros eles não iam passar, não escapariam, e ela tomou uma decisão: se desfazer deles. Os adolescentes não conseguiriam matar: havia já alguns dias que eles estavam andando pela floresta juntos, e, se você passa tanto tempo com uma pessoa, mesmo que seja um estranho, acaba se acostumando com ela, se aproximando — já sabe como come, como dorme, como são seus olhos, suas mãos. Não, os adolescentes não iam conseguir. Isso ela entendeu na hora. Ou seja, ela teria que matar. E então ela começou a se lembrar de como os matara. Teve que enganar uns e outros. Com um dos alemães ela saiu com o pretexto de pegar água e deu-lhe um tiro nas costas. Na nuca. O outro, ela mandou buscar galhos secos… Fiquei estupefata com a tranquilidade com que ela contava isso.

Quem esteve na guerra sempre recorda que um civil se transforma em militar depois de três dias. Por que três dias são suficientes? Ou é só um mito? É o mais provável. Ali, o ser humano é muito mais desconhecido e incompreensível.

Li isso em todas as cartas: “Eu não contei tudo para você porque eram outros tempos. Nos costumamos a calar sobre muitas coisas…”. “Não lhe confiei tudo. Ainda há pouco tempo era proibido falar sobre isso. Ou vergonhoso.” “Recebi a sentença dos médicos: meu diagnóstico é terrível. Quero contar toda a verdade.”

E há pouco tempo chegou uma carta assim: “Para nós, velhos, é difícil de viver… Mas não estamos sofrendo por culpa da nossa aposentadoria baixa e humilhante. O que mais nos fere é que fomos expulsos de um passado grandioso para um presente insuportavelmente mesquinho. Ninguém nos chama mais para ir às escolas, aos museus, já não precisam de nós. Se você lê os jornais, os fascistas são cada vez mais nobres, e os soldados do Exército Vermelho cada vez mais terríveis”.

O tempo também é uma pátria… Mas amo essas mulheres como antes. Não amo sua época, mas as amo.


Svetlana Alexijevich, A guerra não tem rosto de mulher