quarta-feira, 13 de abril de 2022

Narcisismo

John Williams Waterhouse, 1903

 

O termo “narcisismo” vem da descrição clínica e foi escolhido por P. Näcke, em1899, para designar a conduta em que o indivíduo trata o próprio corpo como se este fosse o de um objeto sexual, isto é, olha-o, toca nele e o acaricia com prazer sexual, até atingir plena satisfação mediante esses atos. Desenvolvido a esse ponto, o narcisismo tem o significado de uma perversão que absorveu toda a vida sexual da pessoa, e está sujeito às mesmas expectativas com que abordamos o estudo das perversões em geral. Chamou a atenção da pesquisa psicanalítica o fato de características isoladas da conduta narcisista serem encontradas em muitas pessoas sujeitas a outros distúrbios, como os homossexuais, segundo Sadger, e por fim apareceu a conjectura de que uma alocação da libido que denominamos narcisismo poderia apresentar-se de modo bem mais intenso e reivindicar um lugar no desenvolvimento sexual regular do ser humano.


1 À mesma conjectura chegou-se a partir das dificuldades da psicanálise com neuróticos, pois era como se tal comportamento narcísico fosse um dos limites de sua suscetibilidade à influência. Nesse sentido, o narcisismo não seria uma perversão, mas o complemento libidinal do egoísmo do instinto de autoconservação, do qual justificadamente atribuímos uma porção a cada ser vivo. Um motivo premente para nos ocuparmos com a ideia de um narcisismo primário e normal apareceu quando se fez a tentativa de incluir o que sabemos dadementiapraecox(Kraepelin) ou esquizofrenia (Bleuler) sob a hipótese da teoria da libido. Esses doentes, que eu sugeri designar como parafrênicos, mostram duas características fundamentais: a megalomania e o abandono do interesse pelo mundo externo (pessoas e coisas). Devido a esta última mudança, eles se furtam à influência da psicanálise, não podendo ser curados por nossos esforços. Mas o afastamento do parafrênico face ao mundo externo pede uma caracterização mais precisa. Também o histérico e o neurótico obsessivo abandonam, até onde vai sua doença, a relação com a realidade. A análise mostra, porém, que de maneira nenhuma suspendem a relação erótica com pessoas e coisas. Ainda a mantêm na fantasia, isto é, por um lado substituem os objetos reais por objetos imaginários de sua lembrança, ou os misturam com estes, e por outro lado renunciam a empreender as ações motoras para alcançar as metas relativas a esses objetos. Apenas a esse estado da libido se deveria aplicar o termo usado por Jung sem distinção: o de introversão da libido. Sucede de outro modo com o parafrênico. Este parece mesmo retirar das pessoas e coisas do mundo externo a sua libido, sem substituí-las por outras na fantasia. Quando isso vem a ocorrer, parece ser algo secundário, parte de uma tentativa de cura que pretende reconduzir a libido ao objeto.

2 Surge a pergunta: qual o destino da libido retirada dos objetos na esquizofrenia? A megalomania própria desses estados aponta-nos aqui o caminho. Ela se originou provavelmente à custa da libido objetal. A libido retirada do mundo externo foi dirigida ao Eu, de modo a surgir uma conduta que podemos chamar de narcisismo. No entanto, a megalomania mesma não é uma criação nova, e sim, como sabemos, a ampliação e o explicitamento de um estado que já havia existido antes. Isso nos leva a apreender o narcisismo que surge por retração dos investimentos objetais como secundário, edificado sobre um narcisismo primário que foi obscurecido por influências várias. Insisto em que não pretendo esclarecer ou aprofundar o problema da esquizofrenia, mas apenas reúno o que foi dito em outros lugares, a fim de justificar uma introdução ao narcisismo. Um terceiro elemento que concorre para essa extensão — legítima, ao que me parece — da teoria da libido vem de nossas observações e concepções da vida psíquica das crianças e dos povos primitivos. Encontramos neles traços que, isoladamente, podem ser atribuídos à megalomania: uma superestimação do poder de seus desejos e atos psíquicos, a “onipotência dos pensamentos”, A solicitação para que dê uma resposta definida à segunda questão deve suscitar em todo psicanalista um perceptível mal-estar. Não nos sentimos bem ao abandonar a observação em favor de estéreis disputas teóricas, mas não podemos nos furtar a uma tentativa de esclarecimento. É certo que noções como a de uma libido do Eu, energia dos instintos do Eu e assim por diante não são particularmente fáceis de apreender nem suficientemente ricas de conteúdo; uma teoria especulativa das relações em jogo procuraria antes de tudo obter um conceito nitidamente circunscrito como fundamento. Acredito, no entanto, ser justamente essa a diferença entre uma teoria especulativa e uma ciência edificada sobre a interpretação da empiria. Esta não invejará à especulação o privilégio de uma fundamentação limpa, logicamente inatacável, mas de bom grado se contentará com pensamentos básicos nebulosos, dificilmente imagináveis, os quais espera apreender de modo mais claro no curso de seu desenvolvimento, e está disposta a eventualmente trocar por outros. Pois essas ideias não são o fundamento da ciência, sobre o qual tudo repousa; tal fundamento é apenas a observação. Elas não são a parte inferior, mas o topo da construção inteira, podendo ser substituídas e afastadas sem prejuízo. Em nossos dias vemos algo semelhante na física, cujas concepções básicas sobre matéria, centros de força, atração etc. não seriam menos problemáticas do que as correspondentes na psicanálise. O valor dos conceitos de libido do Eu e libido de objeto está em que derivam da elaboração de características íntimas dos processos neuróticos e psicóticos. A distinção entre uma libido que é própria do Eu e uma que se atém aos objetos constitui o inevitável prosseguimento de uma primeira hipótese, que separava instintos sexuais de instintos do Eu. Pelo menos a isso me levou a análise das puras neuroses de transferência (histeria e neurose obsessiva), e sei apenas que todas as tentativas de prestar contas de tais fenômenos por outros meios fracassaram radicalmente. Dada a completa ausência de uma teoria dos instintos que de algum modo nos orientasse, é lícito, ou melhor, é imperioso experimentar alguma hipótese de maneira consequente, até que falhe ou se confirme. Há vários pontos em favor da hipótese de uma diferenciação original entre instintos sexuais e instintos do Eu, além de sua utilidade para a análise das neuroses de transferência. Admito que somente esse fator não seria inequívoco, pois poderia ser o caso de uma energia psíquica indiferente, que apenas com o ato do investimento de objeto se torna libido. Mas essa distinção conceitual corresponde, primeiro, à separação popular tão corriqueira entre fome e amor. Em segundo lugar, considerações biológicas se fazem valer em seu favor. O indivíduo tem de fato uma dupla existência, como fim em si mesmo e como elo de uma corrente, à qual serve contra — ou, de todo modo, sem — a sua vontade. Ele vê a sexualidade mesma como um de seus propósitos, enquanto uma outra reflexão mostra que ele é tão somente um apêndice de seu plasma germinal, à disposição do qual ele coloca suas forças, em troca de um bônus de prazer — o depositário mortal de uma (talvez) imortal substância, como um morgado, que possui temporariamente a instituição que a ele sobreviverá. A distinção entre instintos sexuais e do Eu apenas refletiria essa dupla função do indivíduo. Em terceiro lugar é preciso não esquecer que todas as nossas concepções provisórias em psicologia devem ser, um dia, baseadas em alicerces orgânicos. Isso torna provável que sejam substâncias e processos químicos especiais que levem a efeito as operações da sexualidade e proporcionem a continuação da vida individual naquela da espécie. Tal probabilidade levamos em conta ao trocar as substâncias químicas especiais por forças psíquicas especiais. Precisamente porque em geral me esforço para manter longe da psicologia tudo o que dela é diferente, inclusive o pensamento biológico, quero neste ponto admitir expressamente que a hipótese de instintos sexuais e do Eu separados, ou seja, a teoria da libido, repousa minimamente sobre base psicológica, escorando-se essencialmente na biologia. Então serei consistente o bastante para descartar essa hipótese, se a partir do trabalho psicanalítico mesmo avultar outra suposição, mais aproveitável, acerca dos instintos. Até agora isso não aconteceu. Pode ser que — em seu fundamento primeiro e em última instância — a energia sexual, a libido, seja apenas o produto de uma diferenciação da energia que atua normalmente na psique. Mas tal afirmação não tem muito alcance. Diz respeito a coisas já tão remotas dos problemas de nossa observação e de que possuímos tão escasso conhecimento, que é ocioso tanto combatê-la quanto utilizá-la; possivelmente essa identidade primeiraa tem tão pouco a ver com nossos interesses psicanalíticos quanto o parentesco primordial de todas as raças humanas tem a ver com a prova de que se é parente do testador, exigida para a transmissão legal da herança. Não chegamos a nada com todas essas especulações. Como não podemos esperar até que uma outra ciência nos presenteie as conclusões finais sobre a teoria dos instintos, é bem mais adequado procurarmos ver que luz pode ser lançada sobre esses enigmas biológicos fundamentais por uma síntese dos fenômenos psicológicos. Estejamos cientes da possibilidade do erro, mas não deixemos de levar adiante, de maneira consequente, a primeira hipótese mencionada de uma oposição entre instintos sexuais e do Eu, que se nos impôs através da análise das neuroses de transferência, verificando se ela evolui de modo fecundo e livre de contradições e se pode aplicar-se também a outras afecções, à esquizofrenia, por exemplo. Naturalmente a situação seria outra, caso se provasse que a teoria da libido já fracassou na explicação da última doença mencionada. C. G. Jung fez tal afirmação,6 e obrigou-me assim a esta última discussão, que eu bem gostaria de ter evitado. Teria preferido seguir até o final o curso tomado na análise do caso Schreber, silenciando a respeito de suas premissas. A afirmação de Jung é no mínimo precipitada. Seus fundamentos são parcos. Primeiro ele invoca o meu próprio testemunho, segundo o qual, devido às dificuldades da análise de Schreber, fui obrigado a estender o conceito de libido, isto é, a abandonar o seu conteúdo sexual, identificando libido com interesse psíquico propriamente. O que se poderia dizer para corrigir tal equívoco de interpretação já foi dito por Ferenczi, numa sólida crítica do trabalho de Jung.7 Resta-me apenas corroborar sua crítica e repetir que não expressei tal renúncia à teoria da libido. Um outro argumento de Jung, segundo o qual não é concebível que a perda da normal função do real possa ser causada apenas pela retração da libido, não é um argumento, mas um decreto;it begs the question, antecipa a decisão e evita a discussão, pois o que deve ser investigado é justamente se e como isto é possível. No seu trabalho grande seguinte, Jung passou ligeiramente ao lado da solução que eu havia indicado há muito: “Nisso deve-se considerar ainda — aliás, algo a que Freud se refere em seu trabalho acerca do caso Schreber — que a introversão da libido sexualis conduz a um investimento do ‘Eu’, mediante o qual possivelmente se produz o efeito da perda da realidade. Constitui de fato uma possibilidade tentadora explicar desse modo a psicologia da perda da realidade”. Mas ele não se detém muito nessa possibilidade. Algumas linhas adiante ele a dispensa, com a observação de que partindo dessa condição “se chegaria à psicologia de um anacoreta ascético, não a uma dementia praecox”. Uma comparação inadequada, que não leva a decisão alguma, como nos ensina a observação de que um tal anacoreta, que “se empenha em erradicar todo traço de desejo sexual” (mas apenas no sentido popular do termo “sexual”), não precisa mostrar sequer uma colocação patogênica da libido. Ele pode ter afastado inteiramente dos seres humanos o interesse sexual, sublimando-o num elevado interesse por coisas divinas, naturais, animais, sem haver experimentado uma introversão de sua libido a suas fantasias ou um retorno dela ao seu Eu. Parece que tal comparação despreza antecipadamente a distinção possível entre o interesse vindo de fontes eróticas e o de outras fontes. Se recordarmos também que as investigações da escola suíça, apesar de todo o seu mérito, trouxeram luz apenas sobre dois pontos do quadro dadementia praecox, a existência de complexos achados tanto em pessoas sadias como em neuróticos e a similitude entre as suas construções fantasiosas e os mitos dos povos, mas de resto não conseguiram esclarecer o mecanismo da doença, então poderemos rechaçar a afirmação de Jung, segundo a qual a teoria da libido fracassou ao lidar com adementia praecoxe por isso está liquidada também para as outras neuroses.

Sigmund Freud