sábado, 23 de abril de 2022

 

Licio Passon 


Necessito de mim mais do que de ninguém. Mas mentiria se

não confessasse o quanto preciso de ti. Tu és o meu vinho e

a minha ressaca. A minha árvore e a minha floresta. O meu

cavalo. A minha casa, o meu mar, o meu coral. A minha tei-

mosia e a minha lucidez. O meu pássaro de chuva e o meu

pássaro de fogo. A minha distância, o meu abismo, a minha

fuga. A minha sombra e o meu túnel. O atalho para o outro

lado de mim.

Tu és a minha estrela e o meu guia. A minha porta, o meu

clarão, a minha injúria. O meu grão, o meu vento, o meu mo-

ínho. O meu sortilégio. O fim da festa e o meio-dia. O meu

carnaval, o meu brinquedo, o meu dia santo. O meu pecado,

a minha penitência. O ouro, a ofensa, o desvario. És o meu

hábito e o meu monge. A minha espiga e o meu pão. A mi-

nha irmã branca, a minha irmã negra, a minha irmã de novas

latitudes. A minha amante e a minha mãe, o meu abraço e as

minhas margens. A minha prostituta, o meu combate, o meu

sorriso. Tu és o meu cálice. O meu elixir e o meu veneno. O

vinho que dá coragem às medusas.

Necessito de ti mais do que de ninguém. Mas mentiria se 

não te confessasse o quanto preciso de mim.


Joaquim Pessoa 

in ANO COMUM