Monika Luniak |
Meu corpo não é meu corpo,⠀
é ilusão de outro ser.⠀
Sabe a arte de esconder-me⠀
e é de tal modo sagaz⠀
que a mim de mim ele oculta.⠀
⠀
Meu corpo, não meu agente,⠀
meu envelope selado,⠀
meu revólver de assustar,⠀
tornou-se meu carcereiro,⠀
me sabe mais que me sei.⠀ ⠀
Meu corpo apaga a lembrança⠀
que eu tinha de minha mente.⠀
Inocula-me seu patos,⠀
me ataca, fere e condena⠀
por crimes não cometidos.⠀ ⠀
O seu ardil mais diabólico⠀
está em fazer-me doente.⠀
Joga-me o peso dos males⠀
que ele tece a cada instante⠀
e me passa em revulsão.⠀ ⠀
Meu corpo inventou a dor⠀
a fim de torná-la interna,⠀
integrante do meu Id,⠀
ofuscadora da luz⠀
que aí tentava espalhar-se.⠀ ⠀
Outras vezes se diverte⠀
sem que eu saiba ou que deseje,⠀
e nesse prazer maligno,⠀
que suas células impregna,⠀
do meu mutismo escarnece.⠀ ⠀
Meu corpo ordena que eu saia⠀
em busca do que não quero,⠀
e me nega, ao se afirmar⠀
como senhor do meu Eu⠀
convertido em cão servil.⠀ ⠀
Meu prazer mais refinado,⠀
não sou eu quem vai senti-lo.⠀
É ele, por mim, rapace,⠀
e dá mastigados restos⠀
à minha fome absoluta.⠀ ⠀
Se tento dele afastar-me,⠀
por abstração ignorá-lo,⠀
volta a mim, com todo o peso⠀
de sua carne poluída,⠀
seu tédio, seu desconforto.⠀ ⠀
Quero romper com meu corpo,⠀
quero enfrentá-lo, acusá-lo,⠀
por abolir minha essência,⠀
mas ele sequer me escuta⠀
e vai pelo rumo oposto.⠀
⠀
Já premido por seu pulso⠀
de inquebrantável rigor,⠀
não sou mais quem dantes era:⠀
com volúpia dirigida,⠀
saio a bailar com meu corpo.⠀
⠀
Carlos Drummond de Andrade