quarta-feira, 13 de abril de 2022

As Contradições Do Corpo⠀

Monika Luniak


Meu corpo não é meu corpo,⠀

é ilusão de outro ser.⠀

Sabe a arte de esconder-me⠀

e é de tal modo sagaz⠀

que a mim de mim ele oculta.⠀

Meu corpo, não meu agente,⠀

meu envelope selado,⠀

meu revólver de assustar,⠀

tornou-se meu carcereiro,⠀

me sabe mais que me sei.⠀ ⠀

Meu corpo apaga a lembrança⠀

que eu tinha de minha mente.⠀

Inocula-me seu patos,⠀

me ataca, fere e condena⠀

por crimes não cometidos.⠀ ⠀

O seu ardil mais diabólico⠀

está em fazer-me doente.⠀

Joga-me o peso dos males⠀

que ele tece a cada instante⠀

e me passa em revulsão.⠀ ⠀

Meu corpo inventou a dor⠀

a fim de torná-la interna,⠀

integrante do meu Id,⠀

ofuscadora da luz⠀

que aí tentava espalhar-se.⠀ ⠀

Outras vezes se diverte⠀

sem que eu saiba ou que deseje,⠀

e nesse prazer maligno,⠀

que suas células impregna,⠀

do meu mutismo escarnece.⠀ ⠀

Meu corpo ordena que eu saia⠀

em busca do que não quero,⠀

e me nega, ao se afirmar⠀

como senhor do meu Eu⠀

convertido em cão servil.⠀ ⠀

Meu prazer mais refinado,⠀

não sou eu quem vai senti-lo.⠀

É ele, por mim, rapace,⠀

e dá mastigados restos⠀

à minha fome absoluta.⠀ ⠀

Se tento dele afastar-me,⠀

por abstração ignorá-lo,⠀

volta a mim, com todo o peso⠀

de sua carne poluída,⠀

seu tédio, seu desconforto.⠀ ⠀

Quero romper com meu corpo,⠀

quero enfrentá-lo, acusá-lo,⠀

por abolir minha essência,⠀

mas ele sequer me escuta⠀

e vai pelo rumo oposto.⠀

⠀ 

Já premido por seu pulso⠀

de inquebrantável rigor,⠀

não sou mais quem dantes era:⠀

com volúpia dirigida,⠀

saio a bailar com meu corpo.⠀

Carlos Drummond de Andrade