sexta-feira, 11 de fevereiro de 2022

Odes maiores ao pai - Hilda Hilst

 Odes maiores ao pai” é uma série de poemas publicada na coletânea “Trajetória Poética do ser” (1963-1966).


À memória de

Apolonio de Almeida Prado Hilst, meu pai.

Meus amigos

Sérgio Milliet

Paulo Sérgio Milliet


(Largo Pesante)


I

Uns ventos te guardaram. Outros guardam-me a mim. E aparentemente separados

Guardamo-nos os dois, enquanto os homens no tempo se devoram.

Será lícito guardarmo-nos assim?

Pai, este é um tempo de espera. Ouço que é preciso esperar

Uns nítidos dragões de primavera, mas à minha porta eles viveram sempre,

Claros gigantes, líquida semente no meu pouco de terra.


Este é um tempo de silêncio. Tocam-te apenas. E no gesto

Te empobrecem de afeto. No gesto te consomem.


Tocaram-te nas tardes, assim como tocaste

Adolescente, a superfície parada de umas águas? Tens ainda na mãos

A pequena raiz, a fibra delicada que a si se construía em solidão?

Pai, assim somos tocados sempre.

Este é um tempo de cegueira. Os homens não se veem. Sob as vestes

Um suor invisível toma corpo e na morte nosso corpo de medo

É que floresce.


Mortos nos vemos. Mortos amamos. E de olhos fechados

Uns espaços de luz rompem a treva. Meu pai: Este é um tempo de treva.


II

Ah, essas dores! E o voltar contínuo ao silêncio das tardes!

Junto ao muro dos mortos o passeio se fazia longo. Estacávamos.

A tarde empobrecida de luz. O tempo galopava.

Vês? Tenho a alma pesada. Uma avidez no olhar

Antes ingênua, agora se fez grave. Há naquele campo a imutável paisagem:

As papoulas abertas, as ruas estreitas e uma grande e única alameda.

E datas, retratos. E súbito o ocre da terra sob os passos.

A mulher caminhava. Comprimia no peito a sua flor e de humildade

Era o olhar à procura do nome. Se tu visses depois que luminosa altives

Se insinuava, quando voltava leve, sem o peso das dádivas.

E muitas passaram vagarosas. Umas lunares, com seus rostos aduncos.

Outras com a centelha escondida dos sacrários.


III

Não é teu este canto porque as palavras se abriram sobre a mesa.

Se chegavas era sem silêncio e tocavas as coisas

Com a leveza dos meninos arrumando os altares. Uma rosa tardia

Mesmo assim desmanchava-se e tua presença na noite eu procurava.

Ninguém jamais nos via quando nos falávamos. As perguntas de sempre,

Os castiçais, o adro vazio da capela em frente.(E as persianas fechadas,

Para que o sal de fora não pousasse

Nas baixelas incríveis da memória). Aquele mar repetindo seu canto

E as vozes partindo teus cristais! Como te abrigavas do ruído das estradas

E os teus livros abertos como se desfizeram naqueles areias!

Nem sei de onde me vêm estes musgos, açoites, esta fonte que é nova

Em minha boca, nem sei dizer da morte o que te ouvi dizer nos ecos de umas noites.


Enquanto te celebro, as janelas do ocaso trazem risos.

E um hóspede atravessou incógnito teu jardim, afundou-se na névoa

Cansou-se do teu hálito nas arestas, nas muradas, nos cálices, em mim.


És presente como um vento que corre entre portas abertas.


IV

Na tua ausência, na casa o perfume das igrejas. O odor

Da castidade antiga dos incensos, reacendeu a alegria da infância

E aspirei contigo o perfume menos casto das cerejas. Na casa,

Um ruído de contas de rosário, mas eu só, meu pai, te vigiava.

Os ventos te seguiram. E próxima do teu passo, au mesma era o silêncio

A pedra. Impossível de abraço.

Uma torre contigo caminhava. Nos muros, nas escadas, refizeram ardis

Fibras trançadas, e aqueles pareciam mais largos, aquelas mais altas.

No teu andar, um quase nada definido. Tinhas o caminhar dos animais,

Espaçado e perdido. Respirei teu mundo movediço: Pai, não viste o sal da terra

Corroendo os pilares, as cruzes, a capela? E os sonho sobre a tua fonte

É mesmo crisálida pronta para ter asas?


Abriram-se os portões mas a casa era nova. A que foi nossa

Tuas filhas te disseram que na noite, um homem e sua torre,

Com paciências guardadas, pouco a pouco a demoliram.


V

Sobrevivi à morte sucessiva das coisas do teu quarto.

Vi pela primeira vez a inútil simetria dos tapetes e o azul diluído

Azul-branco das paredes. E uma fissura de um verde anoitecido

Na moldura de prata. E nela o meu retrato adolescente e gasto.

E as gavetas fechadas. Dentro delas aquele todo silencioso e raro

Como um barco de asas. Que fome de tocar-te nos papéis antigos!

Que amor se fez em mim, multiforme e calado!

Que faces infinitas eu amei para guardar teu rosto primitivo!


Desce da noite um torpor singular, água sob o casco de um velho veleiro

Calcinado. Em mim, o grande limbo de lamento, de dor, e o medo de esquecer-te

De soltar estas âncoras e depois florir sem ao menos guardar tua ressonância.

Abraça-me. Um quase nada de luz pousou na tua mesa

E expandiu-se na cor, como um pequeno prisma.


VI

Há tanto a te dizer agora! Meus olhos se gastaram

Procurando a palavra nas figuras, nos textos, nas estórias.

Era preciso viajar e levantada em renúncias redescobrir a morte

Além de seu sudário e suas tremuras. Quase nada aprendi. De nada me lembrei.

Há talvez a memória de tatos, um sentir rarefeito, um ouvido inexato

Deitado em solidão sobre o teu peito. E adeuses ingênuos, calados de vitória

E aquele de fereza, de acerto, dissolvido em orgulho, ressuscitado

Vagamente em canto. A na manhã, o meu sonho passara e a minha voz

Não se erguera em poesia.


Será preciso esquecer o contorno de umas formas que vi: naves, portais

E o grande crisântemo sobre a feixa restrita do canteiro.


Através do gradil, no terraço do tempo de percebo.

E ainda que as janelas se fechem, meu pai, é certo que amanhece.


Hilda Hilst