domingo, 13 de fevereiro de 2022

Notas do subsolo (Fiódor Dostoiévski)


 

"Existem nas recordações de todo homem coisas que ele só revela aos seus amigos. Há outras que não revela mesmo aos amigos, mas apenas a si próprio, e assim mesmo em grande segredo. Mas também há, finalmente, coisas que o homem tem medo de desvendar até de si próprio; e, em cada homem honesto, acumula-se um número bastante considerável de coisas do gênero. E acontece até o seguinte: quanto mais honesto é o homem, mais coisas assim ele possui. Pelo menos, eu mesmo só recentemente me decidi a lembrar as minhas aventuras passadas e, até hoje, sempre as contornei com alguma inquietação. Mas agora, que não lembro apenas, mas até mesmo resolvi anotar, agora quero justamente verificar: é possível ser absolutamente franco, pelo menos consigo mesmo, e não temer a verdade integral? Observarei a propósito: Heine afirma que uma autobiografia exata é quase impossível, e que uma pessoa falando de si mesma certamente há de mentir."

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"Desculpai-me, senhores, por ter-me enredado em filosofias; isto se deu por causa dos meus quarenta anos de subsolo! Permiti-me fantasiar um pouco. Pensai no seguinte: a razão, meus senhores, é coisa boa, não há dúvida, mas razão é só razão e satisfaz apenas a capacidade racional do homem, enquanto o ato de querer constitui a manifestação de toda a vida, isto é, de toda a vida humana, com a razão e com o coçar-se. E, embora a nossa vida, nessa manifestação, resulte muitas vezes em algo bem ignóbil, é sempre a vida e não apenas a extração de uma raiz quadrada. Eu, por exemplo, quero viver muito naturalmente, para satisfazer toda a minha capacidade vital, e não apenas a minha capacidade racional, isto é, algo como a vigésima parte da minha capacidade de viver. Que sabe a razão? Somente aquilo que teve tempo de conhecer (algo, provavelmente, nunca chegará a saber; embora isto não constitua consolo, por que não expressá-lo?), enquanto a natureza humana age em sua totalidade, com tudo o que nela existe de consciente e inconsciente, e, embora minta, continua vivendo"

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"O homem é estúpido, extremamente estúpido, ou, para melhor dizer, não é completamente estúpido; mas é tão ingrato que não tem comparação em toda criação. Por isso, de maneira nenhuma estranharia se visse surgir de repente no seio dessa racionalidade futura algum tipo de aspecto vulgar, ou até espirituoso, que, pondo-se nas suas tamanquinhas, nos dissesse: 'Bem, meus senhores: não acham que devemos dar um bom pontapé na razão, só com o fim de mandar os logaritmos para o diabo e poder viver à nossa estúpida vontade?' Mas isso ainda seria pouco; o mal é que encontraria logo partidários, tal é a natureza humana. E tudo isso por uma causa tão insignificante, que nem sequer deveria mencionar, e é que em todos os tempos e lugares nunca houve em todo o mundo um homem que não quisesse conduzir-se segundo a sua vontade e não em obediência aos ditames da razão e do seu interesse. Na verdade, pode uma pessoa querer conduzir-se contra o seu proveito, e acontece até que tal coisa seja absolutamente necessária. O nosso próprio desejo, voluntário e livre; o nosso próprio capricho, ainda mais irrefletido; a fantasia desenfreada até raiar na extravagância: eis em que consiste a vantagem, grosso modo, o interesse mais importante, que não se inclui em nenhuma classificação e que manda passear todos os todos os sistemas e teorias. Como puderam imaginar todos esses sábios que o homem precisa de uma vontade normal virtuosa? Onde foram buscar essa ideia de que o homem precisa de desejar de maneira sensata e proveitosa? O homem só precisa de uma coisa: querer com independência, custe o que custar essa independência e quaisquer que sejam as consequências que dela derivem. Mas, no final de contas, só o diabo deve saber o que o homem deseja..."


Fiódor Dostoiévski, Notas do Subsolo