quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022

Em busca do tempo perdido - Marcel Proust

 


Durante muito tempo, deitava-me cedo. Às vezes, mal apagada a vela, meus olhos se fechavam tão depressa que eu nem tinha tempo de pensar: "Vou dormir". E, meia hora depois, a ideia de que já era tempo de conciliar o sono me despertava: queria deixar o livro que julgava ainda ter nas mãos e assoprar a vela; dormindo, não havia deixado de refletir sobre o que acabara de ler, porém tais reflexões haviam tomado um aspecto um tanto singular; parecia-me que era de mim mesmo que o livro falava: uma igreja, um quarteto, a rivalidade de Francisco I e Carlos V. Essa crença sobrevivia por alguns segundos ao meu despertar; não ofendia a razão, mas pesava como escamas sobre os olhos, impedindo-os de perceber que a vela já não estava acesa. Depois, principiava a me parecer ininteligível, como, após a metempsicose, as ideias de uma existência anterior; o assunto do livro se desligava de mim, eu ficava livre para me adaptar ou não a ele; logo recobrava a vista e me surpreendia bastante por estar rodeado de uma obscuridade, suave e repousante para os olhos, porém ainda mais talvez para o espírito, ao qual surgia como uma coisa sem causa, incompreensível, como algo verdadeiramente obscuro. Perguntava-me que horas poderiam ser; ouvia o silvo dos trens que, mais ou menos afastado, como um canto de pássaro na floresta, assinalando as distâncias, me informava sobre a extensão da campina deserta onde o viajante se apressa em direção à próxima parada: o caminho que ele segue vai lhe ficar gravado na lembrança pela excitação de conhecer novos lugares, praticar atos inusitados, pela conversação recente e as despedidas sob a lâmpada estranha que o seguem ainda no silêncio da noite, e pela doçura próxima do regresso. 

Apoiava brandamente as faces contra as belas faces do travesseiro que, cheias e frescas, são como os rostos da nossa infância. Riscava um fósforo para ver o relógio. Quase meia-noite. É o momento em que o enfermo, que teve de viajar e ir dormir num hotel desconhecido, acordado por uma crise, se alegra ao distinguir debaixo da porta um raio de luz. Felicidade! Já é dia! Daqui a pouco os criados vão se levantar, poderá tocar a campainha, virão prestar-lhe socorro. A esperança de ser aliviado lhe dá coragem para suportar o sofrimento. Ainda agora pensou ouvir passos; os passos se aproximam e logo se afastam. E o fio de luz que estava sob a porta desapareceu. É meia-noite; acabam de apagar o gás; o último criado já se retirou e é preciso ficar a noite inteira sofrendo sem remédio. 

Voltava a adormecer, e às vezes só despertava por um breve instante, o suficiente para ouvir os estalos orgânicos da madeira dos móveis, para abrir os olhos e olhar ao caleidoscópio da escuridão, para saborear, graças a um momentâneo resplendor de consciência, o sonho em que estavam sumidos os móveis, o quarto, tudo aquilo do que eu não era mais que uma ínfima parte, tudo a cuja insensibilidade voltava eu muito em breve a me somar. Outras vezes, ao dormir, tinha retrocedido sem esforço a uma época para sempre acabada de minha vida primitiva, tinha-me encontrado novamente com um de meus medos de menino, como aquele de que meu tio me atirasse dos cachos de cabelo, e que se dissipou. Data que para mim assinala uma nova era. O dia que me cortaram isso. Este acontecimento havia esquecido durante o sonho, e voltava para minha lembrança logo que acertava em despertar para escapar das mãos de meu tio: mas, por via de precaução, envolvia a cabeça com o travesseiro antes de voltar ao mundo dos sonhos. 

Outras vezes, assim como Eva nasceu de uma costela de Adão, uma mulher nascia enquanto eu estava dormindo, de uma má postura de meu quadril. Sendo criatura filha do prazer estava a ponto de desfrutar, me parecia que era ela a que me oferecia isso. Meu corpo sentia no dela seu próprio calor, ia buscá-lo, e eu despertava. Todo o resto dos mortais me aparecia como coisa muito imprecisa junto desta mulher, da que me separasse fazia um instante: conservava ainda minha bochecha o calor de seu beijo e sentia-me dolorido pelo peso de seu corpo. Se, como acontecia algumas vezes, representava com o semblante de uma mulher que eu tinha conhecido na vida real, eu ia entregar-me com todo meu ser a este único fim: encontrá-la; quão mesmo essas pessoas que saem de viagem para ver com seus próprios olhos uma cidade desejada, imaginando-se que em uma coisa real saboreia-se o encanto do sonhado. Pouco a pouco a lembrança dissipava; já estava esquecida a criatura de meu sonho. 

Quando um homem está dormindo tem em torno, como um aro, o fio das horas, a ordem dos anos e dos mundos. Ao despertar, consulta-os instintivamente, e, em um segundo, lê o lugar da terra em que se acha, o tempo que transcorreu até seu despertar; mas estas ordenações podem confundir-se e quebrar-se. Se depois de uma insônia, na madrugada, surpreende-o o sonho enquanto lê em uma postura distinta da que está acostumado a tomar para dormir, bastará elevar o braço para parar o Sol; para fazê-lo retroceder: e no primeiro momento de seu despertar não saberá que horas são, imaginará que acaba de deitar-se. Se dormitar em uma postura ainda menos usual e recolhimento, por exemplo, sentado em uma poltrona depois de comer, então um transtorno profundo se introduzirá nos mundos exagerados, a poltrona mágica percorrerá a toda velocidade os caminhos do tempo e do espaço, e no momento de abrir as pálpebras perceberá que dormiu uns meses antes e em uma terra distinta. Mas a mim, embora dormisse em minha cama de costume, bastava-me com um sonho profundo que afrouxasse a tensão de meu espírito para que este deixasse escapar o plano do lugar aonde eu dormia, ao despertar a meia-noite, como não sabia onde me encontrava, no primeiro momento tampouco sabia quem era; em mim não havia outra coisa que o sentimento da existência em sua simplicidade, primitiva, tal como pode vibrar no fundo de um animal, encontrar-se em maior nudez com o homem das cavernas; mas então a lembrança, ainda não era a lembrança do lugar em que me achava, mas, o de outros lugares aonde eu tinha vivido e aonde poderia estar. Descia até mim como um socorro que tivesse chegado do alto para me tirar de um nada, porque eu sozinho nunca poderia sair; em um segundo passava por cima de séculos de civilização, a imagem opaca vista das lamparinas de petróleo, das camisas com gola alta dobrada, foram recompondo lentamente os rasgos peculiares de minha personalidade.

 Essa imobilidade das coisas que nos rodeiam, acaso é uma qualidade que impomos, com nossa certeza de que elas são essas coisas, nada mais que essas coisas, com a imobilidade que toma nosso pensamento frente a elas. O caso é que quando eu despertava assim, com o espírito em comoção, para averiguar, sem chegar a obtê-lo, em onde estava, tudo girava em volta de mim, na escuridão: as coisas, os países, os anos. Meu corpo, muito torpe para mover-se, tentava, fora de forma de seu cansaço, determinar a posição de seus membros para daí induzir a direção da parede e o lugar de cada móvel, para reconstruir e dar nome à morada que o abrigava. Sua memória dos flancos, dos joelhos, dos ombros, oferecia-lhe sucessivamente as imagens dos vários quartos em que dormisse, enquanto que, ao seu redor, as paredes, invisíveis, trocando de lugar, segundo a habitação imaginada, giravam nas trevas. Antes do meu pensamento vacilante, na soleira dos tempos e das formas, identificasse, engrenado às diversas circunstâncias ofereciam, o lugar de que se tratava, o outro, meu corpo, ia acordando para cada lugar de como era a cama, de onde estavam as portas, de onde davam as janelas, se havia um corredor, e, além disso, dos pensamentos que ao dormir ali preocupavam e que ao despertar voltava a encontrar. O lado de meu corpo, ao tentar adivinhar sua orientação, acreditava-se, por exemplo, estar jogado de cara à parede, em um grande leito com dossel, eu em seguida dizia: «Ah! Por fim dormi, embora mamãe não veio me dizer adeus», é que estava no campo, na casa de meu avô, morto já fazia tanto tempo; e meu corpo, aquele lado de meu corpo em que me apoiava, fiel guardião de um passado que eu nunca devesse esquecer, recordava-me a chama da lamparina de cristal da Boêmia, em forma de urna, que pendia do teto por leves correntinhas; a chaminé de mármore de Siena, no quarto de casa de meus avós, no Combray; naqueles dias longínquos que eu me figurava naquele momento como atuais, mas sem representar com exatidão; teria que ver muito mais claro um instante depois, quando despertasse, por completo.

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E meu pensamento não seria também, por acaso, um esconderijo em cujo fundo eu sentia que permanecia oculto, até para olhar o que se passava lá fora? Quando eu via um objeto exterior, a consciência de que o estava olhando permanecia entre mim e ele, bordava-o com uma tênue orla espiritual que me impedia de nunca tocar diretamente a sua matéria; volatilizava-se esta de alguma forma antes que eu tomasse contato com ela, como um corpo incandescente que se aproxima de um objeto molhado não chega a tocar sua umidade, pois se faz sempre anteceder de uma zona de evaporação. Nesse tipo de tela colorida de estados diversos que, enquanto eu lia, minha consciência ia desenrolando simultaneamente, e que iam desde as aspirações mais profundamente escondidas dentro de mim até a visão inteiramente exterior que eu tinha do horizonte diante dos olhos, na extremidade do jardim, o que havia de principal em mim, de mais íntimo, o leme que governava o resto num movimento incessante, era a minha crença na riqueza filosófica, na beleza do livro que estava lendo, e meu desejo de me apropriar delas, fosse qual fosse esse livro.

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Depois desta crença central que, durante a leitura, executava movimentos incessantes de dentro para fora, no sentido da descoberta da verdade, vinham as emoções que me dava a ação na qual tomava parte, pois as tardes eram mais cheias de acontecimentos dramáticos do que, muitas vezes, uma vida inteira. Eram os acontecimentos que ocorriam no livro que estava lendo; é verdade que as personagens a quem interessavam não eram "reais", como dizia Françoise. Mas todos os sentimentos que nos fazem experimentar a alegria ou a desgraça de uma personagem real só ocorrem em nós por intermédio de uma imagem dessa alegria ou dessa desgraça; a engenhosidade do primeiro romancista consistiu em compreender que, no aparelho das nossas emoções, sendo a imagem o único elemento essencial, a simplificação que consistiria em suprimir pura e simplesmente as personagens reais seria um aperfeiçoamento decisivo. Um ser real, por mais profundamente que simpatizemos com ele, em grande parte só o percebemos através dos sentidos, isto é, permanece opaco para nós, oferece um peso morto que nossa sensibilidade não consegue erguer. Se uma desgraça o atinge, esta só poderá nos comover numa pequena parte da noção global que temos dele, e ainda mais, só numa pequena parte da noção total que tem de si mesmo é que sua própria desgraça poderá comovê-lo. O achado do romancista foi ter tido a ideia de substituir essas partes impenetráveis à alma por uma quantidade idêntica de partes materiais, isto é, que nossa alma pode assimilar. Desde então, que importa que as ações, as emoções desses seres de um novo tipo nos pareçam verdadeiras, visto que fizemo-las nossas, que é dentro de nós que se produzem, que mantêm sob seu domínio, enquanto viramos febrilmente as páginas do livro, a rapidez da nossa respiração e a intensidade do nosso olhar. E uma vez que o romancista nos pôs nesse estado, no qual, como em todos os estados exclusivamente interiores, toda emoção é duplicada, e onde seu livro vai perturbar-nos, à maneira de um sonho, mas de um sonho mais claro que os que temos ao dormir, e cuja lembrança vai durar mais, então, eis que ele deflagra em nós, durante uma hora, todas as fortunas e todas as desgraças possíveis, algumas das quais iríamos levar a vida inteira para conhecer, ao passo que outras, as mais intensas, jamais nos seriam reveladas porque a lentidão com que se produzem impede que as percebamos. (Assim vai mudando o nosso coração, durante a vida, e esta é a pior das dores; porém só a conhecemos através da leitura, pela imaginação: na realidade o coração se transforma da mesma maneira como se produzem certos fenômenos da natureza, tão vagarosamente que, embora possamos verificar de modo sucessivo seus estados diferentes, em compensação nos foge a própria sensação da mudança.)

Já menos interior a meu corpo que essa vida dos personagens, vinha a seguir, meio projetada diante de mim, a paisagem onde se desenrolava a ação e que exercia sobre meu pensamento uma influência bem maior que a outra, aquela que eu tinha sob os olhos quando os erguia do livro. Foi assim que, durante dois verões, no calor do jardim de Combray, senti, por causa do livro que lia na ocasião, a nostalgia de uma região montanhosa e fluvial, onde veria muitas serrarias e onde, no fundo da água cristalina, apodreciam pedaços de madeira debaixo de tufos de agrião; não longe dali, cachos de flores violáceas e avermelhadas subiam ao longo dos muros baixos. E como o sonho de uma mulher que me tivesse amado estava sempre presente no meu pensamento, naqueles verões tal sonho se impregnou do frescor das águas correntes; e cachos de flores violáceas e avermelhadas se elevavam imediatamente de cada lado daquela que foi a mulher evocada, subindo como cores complementares. E não era apenas porque uma imagem com que sonhamos permanece sempre marcada, se embeleza e enriquece com o reflexo de cores estranhas que por acaso a rodeiam no nosso devaneio; pois essas paisagens dos livros que eu lia, eram apenas paisagens, para mim, mais vivamente representadas na minha imaginação que aquelas que Combray punha diante de meus olhos, mas eram inteiramente análogas.

Pela escolha que fizera o autor, pela fé com que meu pensamento ia ao encontro de sua palavra como de uma revelação, elas me pareciam ser impressão que de modo nenhum me dava a região onde me achava, e, principalmente, nosso jardim, produto sem prestígio da fantasia exata do jardineiro, que minha avó desprezava uma parte verdadeira da própria Natureza, digna de ser estudada e aprofundada. Se, quando eu lia um livro, meus pais me houvessem permitido ir visitar a região nele descrita, julgaria ter dado um passo inestimável para a conquista da verdade. Pois se a gente tem sempre a sensação de estar rodeada pela própria alma, isto não se dá como numa prisão imóvel; antes, sentimo-nos como que levados junto com ela num perpétuo impulso para ultrapassá-la, para atingir o exterior, com uma espécie de desânimo, ouvindo sempre ao nosso redor esta sonoridade semelhante que não é um eco de fora e sim o ressoo de uma vibração interna. Procuramos achar nas coisas, que por isso nos são preciosas, o reflexo que nossa alma projetou sobre elas, e ficamos desapontados ao verificar que elas parecem desprovidas, na natureza, do encanto que deviam, em nosso pensamento, à vizinhança de certas ideias; às vezes, transformamos todas as forças dessa alma em habilidade, em esplendor, para agir sobre as criaturas que, percebemos bem, situam-se fora de nós e que nunca atingiremos. Assim, se eu imaginava sempre ao redor da mulher amada os lugares que então mais desejava, se suspirasse para que fosse ela quem me levasse a visitá-los, ela quem me abrisse o acesso a um mundo desconhecido, não era isto devido ao acaso de uma simples associação de ideias; não, é que meus sonhos de viagem e de amor não passavam de momentos que hoje separo artificialmente como se fizesse cortes em diversas alturas de um repuxo irisado e aparentemente imóvel de um mesmo e inflexível jorro de todas as forças da minha vida

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O universo aspira confusamente a entrar em contato conosco. Depende de nós o rompimento dessa espécie de encantamento que torna as coisas prisioneiras, de içá-las até nós, de impedir que elas mergulhem para sempre no nada. Não é possível que uma música, uma pintura, que nos tenham comovido, não correspondam a uma realidade espiritual.

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O trabalho de causalidade, que acaba por produzir todos os efeitos possíveis, e por conseguinte também aqueles que havíamos julgado menos viáveis, esse trabalho é às vezes lento, tornando-se ainda um pouco mais lento devido ao nosso desejo - que, procurando acelerá-lo, o entrava - e também devido à nossa própria existência, e só se realiza depois de termos deixado de desejar e, muitas vezes, de viver.

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No sono não se é mais ninguém. Como, então, procurando nosso pensamento, a nossa personalidade, como se procura um objeto perdido, acaba-se por encontrar o próprio eu antes de outro qualquer? Por que, quando recomeçamos a pensar, não é então uma outra personalidade, que não a anterior, que se encarna em nós? Não se vê o que é que dita a escolha e por que, entre os milhões de seres humanos que a gente poderia ser, vamos pôr a mão exatamente naquele que éramos na véspera. Por quê?

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Uma pessoa jamais se assemelha a um caminho reto, mas espanta-nos com os seus singulares e inevitáveis volteios e atalhos de que os outros não se apercebem e por onde nos é penoso ter de passar.


Marcel Proust