sexta-feira, 11 de fevereiro de 2022

Caos em poesia - D. H. Lawrence

Hikmet Cetinkaya


Poesia, eles dizem, é uma questão de palavras. E isso é tão verdade quanto dizer que as pinturas são uma questão de tinta, e os afrescos uma questão de água e diluição das cores. Está tão longe da verdade completa que assim se torna ligeiramente tolo se declarando assim sentenciosamente.

Poesia é uma questão de palavras. Poesia é também o afinar de palavras dentro de um murmúrio, de uma melodia, ou de um rastro de cores. Poesia é um entrejogo de imagens. Poesia é a sugestão prismática de uma ideia. Poesia é tudo isso e ainda alguma outra coisa a mais. Dados todos estes ingredientes, você obtém alguma coisa bem parecida com poesia, algo de que poderão dizer “Oh! Isso é muito poético”. E “o que é muito poético”, como um brinque, estará sempre na moda. Mas a poesia ainda é outra coisa.

A qualidade essencial da poesia é que ela faz um novo esforço de atenção e “descobre” um novo mundo dentro do mundo conhecido. O homem, e os animais, e as flores, e o dos vivem dentro de um estranho e para sempre emergente caos. Chamamos de cosmos o caos com que nos acostumamos. Ao inefável caos interior de que somos constituídos chamamos consciência, e mente, e até civilização. Mas ele é, no fim das contas, caos, iluminado por visões ou não. Da mesma forma como o arco-íris pode ou não iluminar a tempestade. E, como o arco-íris, a visão perece.

Mas o homem não pode viver no caos. Os animais podem. Para o animal, tudo é caos, há somente alguns poucos aspectos e movimentos recorrentes dentro de ondulações vibratórias. E o animal está contente. Mas o homem, não. O homem precisa embrulhar a si numa visão, fazer uma casa com uma forma visível e com estabilidade, com fixidez.

Em seu terror pelo caos, o homem começa armando um guarda-sol entre ele próprio é aquele vórtice intenso na sua duração sem fim. Então ele colore o lado interno de seu guarda-sol, imitando o firmamento. Então ele desfila por aí, vive e morre debaixo de seu guarda-sol. Legado a seus descendentes, o guarda-sol torna-se uma cúpulacapela, uma casaforte, uma câmara mortuária, e os homens começam a sentir, finalmente, que alguma coisa está errada.

O homem constrói um edifício assombroso a partir de si, erguido entre ele mesmo e o caos selvagem, tornando-se gradualmente, empalidecido e asfixiado sob o tecido do seu guarda-sol. Então vem um poeta, o inimigo das convenções, e faz um rasgão no guarda-sol; e vejam! O lampejo de caos é agora uma visão, uma janela para o sol. Em breve, porém, por se acostumar à visão, e por não suportar aquela dose de caos, o homem-lugar-comum pinta um simulacro, uma cópia grosseira da janela que se abre para o caos, e reveste o guarda-sol com os pedaços pintados do simulacro.

Em outras palavras: ele se habituou à visão, domesticando-a; a visão é agora parte da decoração do lar. Sendo assim, o guarda-sol se parece com um firmamento aberto e brilhante, multifacetado. Mas ai de nós! Tudo é apenas simulacro feito de múltiplos retalhos. Homero e Keats, com notas de rodapé e glossário.

Está é a história da poesia em nossa era. Alguém vê titãs no ar selvagem do caos, e então os próprios titãs tornam-se um muro entre as gerações subsequentes e o caos que deveriam ter herdado. “O selvagem céu moveu-se e cantou”. Mesmo isso se torna um guarda-sol entre a humanidade e o céu feito de ar fresco; aquele céu tornou-se uma abóbada ilustrada, um afresco num teto abobadado, sob o qual o homem desbota e permanece insatisfeito. Até que outro poeta faça um rasgão para o aberto e selvagem caos.

Mas, por fim, o nosso teto não nos engana mais. É reboco pintado, e mesmo toda a astúcia de todas as eras humanas não será capaz de nos colocar lá dentro. Dante ou Leonardo, Beethoven ou Whitman- vejam! Estão pintados no reboco de nossa abóbada. Como São Francisco pregando para os pássaros em Assis. Maravilhoso tal como o ar, tal como o espaço apassarado e o caos que há em muitas coisas- parcialmente, porque afresco ficou desbotado. Mesmo assim, nós nos tornamos felizes por termos saído daquela igreja para dentro do caos natural.

Esta é uma crise importante para a humanidade: quando temos que voltar para o caos. Até aqui o guarda-sol tem funcionado, e os poetas fazem rasgos nele, e a massa das pessoas pode ser educada gradualmente de acordo com a visão de cada rasgo: o que significa que eles sobrepõem emendas com os remendos que se parecem, justamente, com a visão no rasgão: enquanto este processo puder prosseguir e a humanidade puder ser educada de acordo com ele, e, assim, construída, a civilização continuará, com mais ou menos sucesso, a completar a pintura de sua própria prisão. Isto é chamado de completar a consciência. Que alegria os homens tiveram quando, por exemplo, Wordsworth fez um rasgão e viu uma prímula! Até então, os homens só tinham visto uma obscura e indiferenciada prímula na sombra de um guarda-sol. Eles a viram através de Wordsworth, no pleno brilho do caos. Desde então, gradualmente, nós temos chegado a ver a primavera como nada mais exceto prímulas.

O que equivale a dizer que nós temos remendado o rasgão. E que alegria maior ainda Shakespeare fez uma grande fenda e viu um homem pensativo e emocionado lá fora no caos, para além da ideia convencional e do guarda-sol coberto de imagens morais e paladinos moldados em ferro, erguidos na Idade Média. Agora, entretanto, ai de nós! O teto de nossa capela está densamente revestido com Hamlets e Macbeths, as paredes laterais também, e a ordem está estabelecida e completa. O homem não pode ser nada diferente da sua imagem. O caos está completamente barrado no seu fora.

O guarda-sol tornou-se tão grande, os remendos e rebocos estão tão apertados e duros, que ele não pode ser mais rasgado. Se houvesse um rasgão, a fenda não seria mais uma visão, ela seria apenas uma violação. Nós deveríamos tampá-la de uma vez, a fim de combinar com o resto do tecido.

Dessa forma, o guarda-sol é absoluto. E, sendo assim, o clamor pelo caos torna-se uma nostalgia. E isto prosseguirá até um vento terrível reduzir o guarda-sol a tiras e grande parte da humanidade ao oblívio. O que sobrar irá despedaçar-se no meio do caos. Porque o caos está sempre lá, e sempre estará, não importa o quanto nós construamos guarda-sóis com as visões.

E quanto aos poetas neste nó? Eles revelam o desejo interno da humanidade. O que revelam? Eles mostram o desejo por caos e, ao mesmo tempo, o medo do caos. O desejo pelo caos é a respiração de sua poesia. O medo do caos está no desfile de formas e técnicas. Poesia, dizem, é feita de palavras.

Então, sopram-se bolhas de som e imagem, que, em seguida, irão estourar com a respiração que anela pelo exato caos que as preenche. Os poetastros podem fazer bolinhas bonitas e brilhantes para a árvore de natal, as quais nunca se rompem, porque não há sopro dentro delas: elas permanecem até o momento em que as deixamos cair.


Caos em poesia - D. H. Lawrence 

Tradução de Wladimir Garcia