quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

Ensaio sobre a cegueira


José Saramago foto Nuno Ferreira Santos

O edifício à porta do qual a limusina se encontra é um banco. O carro trouxe o presidente do conselho de administração à reunião plenária semanal, a primeira que se realizava desde que se tinha declarado a epidemia de mal-branco, e não houve tempo depois para levá-lo à garagem subterrânea, onde esperaria o fim dos debates. O condutor cegou quando o presidente ia a entrar no edifício, pela porta principal, como gostava, ainda deu um grito, estamos a falar do condutor, mas ele, estamos a falar do presidente, já não o ouviu. Aliás, a reunião não seria tão plenária quanto a sua designação presumia, nos últimos dias tinham cegado alguns dos membros do conselho. O presidente não chegou a abrir a sessão, cuja ordem de trabalhos previa precisamente a discussão e tomada de medidas para o caso de virem a cegar todos os membros do conselho de administração efetivos e suplentes, e nem sequer pôde entrar na sala de reuniões porque quando o ascensor o levava ao décimo quinto andar, exatamente entre o nono e o décimo, faltou a corrente eléctrica, para nunca mais. E como uma desgraça nunca vem só, no mesmo instante cegaram os eletricistas que se ocupavam da manutenção da rede interna de energia e consequentemente também do gerador, modelo antigo, não automático, que andava há tempos para ser substituído, o resultado, como antes se disse, foi ter ficado o ascensor parado entre o nono e o décimo andares. O presidente viu cegar o ascensorista que o acompanhava, ele próprio perdeu a vista uma hora depois, e como a energia não voltou e os casos de cegueira dentro do banco se multiplicaram nesse dia, o mais certo é que os dois ainda lá estejam, mortos, escusado será dizê-lo, fechados num túmulo de aço, e por isso felizmente a salvo de cães devoradores.

Não havendo testemunhas, e se as houve não consta que tenham sido chamadas a estes autos para nos relatarem o que se passou, é compreensível que alguém pergunte como foi possível saber que estas coisas sucederam assim e não doutra maneira, a resposta a dar é a de que todos os relatos são como os da criação do universo, ninguém lá esteve, ninguém assistiu, mas toda a gente sabe o que aconteceu. A mulher do médico tinha perguntado, que se terá passado com os bancos, não era que lhe importasse muito, apesar de ter confiado as suas economias a um deles, fez a pergunta por simples curiosidade, apenas porque o pensou, nada mais, nem esperava que lhe respondessem, por exemplo, assim, No princípio, Deus criou os céus e a terra, a terra era informe e vazia, as trevas cobriam o abismo, e o Espírito de Deus movia-se sobre a superfície das águas, em vez disto o que sucedeu foi o velho da venda preta dizer enquanto seguiam avenida abaixo, Pelo que pude saber quando ainda tinha um olho para ver no princípio foi o diabo, as pessoas. com o medo de ficarem cegas e desmunidas, correram aos bancos para retirarem os seus dinheiros, achavam que deviam acautelar o futuro, e isto há que compreendê-lo, se alguém sabe que não vai poder trabalhar mais, o único remédio, pelo tempo que elas durarem, é recorrer às economias feitas no tempo da prosperidade e das previsões de largo alcance, supondo que a pessoa tivera de fato a prudência de ir acumulando as poupanças grão a grão, o resultado da fulminante corrida foi terem falido em vinte e quatro horas alguns dos principais bancos, o governo interveio a pedir que se acalmassem os ânimos e a apelar para a consciência cívica dos cidadãos, terminando a proclamação com a declaração solene de que assumiria todas as responsabilidades e deveres decorrentes da situação de calamidade pública que se vivia, mas o parche não conseguiu aliviar a crise, não só porque as pessoas continuavam a cegar, mas também porque as que ainda viam só pensavam em salvar o seu rico dinheiro.

José Saramago em "Ensaio sobre a cegueira"