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Liz Viztes |
Gosto da palavra "amantes". Amantes são aqueles que se amam. Os amantes, separados pela distância, sentem saudades… Alegram-se com a memória do rosto da pessoa amada. Diferente das palavras "marido" e "esposa". Para se ser "marido" e "esposa" não é preciso amar. Ouvi, de um padre, na sua homilia aos noivos: "O que os une não é o seu amor. É o contrato". Padre ortodoxo aquele. Conhecia bem a teologia da igreja. Porque, para a igreja, o que une as pessoas não é o que elas sentem. É o ato sacramental que o sacerdote executa. É a igreja que estabelece a união matrimonial. Sacramentos são atos que um sacerdote executa, em nome de Deus. Portanto, é Deus que executa. E se é Deus que executa, não pode ser desfeito. "Aquilo que Deus juntou não o separe o homem". A rejeição do divórcio por parte da igreja nada tem a ver com o seu amor pela família. O que está em jogo é o poder divino da igreja para unir. Se a igreja aceitasse o divórcio ela estaria confessando que o sacramento do matrimônio não é coisa divina. E, com isso, estaria se desqualificando como legítima representante de Deus.
Acho que o certo seria dizer: Aquilo que Deus juntou o homem não separa. Se separou é porque Deus não juntou…
Unidos pela igreja o marido e a esposa tem a permissão – corrijo-me, têm a obrigação de realizar o ato sexual. A obrigação de realizar o ato sexual tem a ver com a demografia dos céus e dos infernos. É preciso completar o número dos salvos e dos condenados para que venha o dia do juízo. O objetivo da união sexual não é a realização do amor. O amor é sentimento humano. O objetivo da união sexual é a procriação. Essa é a lei da natureza.
Um homem e uma mulher unidos pelo sacramento tem o dever de se unirem sexualmente, ainda que se odeiem. Porque não é o amor que justifica o sexo; é o contrato…
Para a igreja o sexo pertence ao mundo a que Buber deu o nome de "Eu-Isso" e não ao mundo "Eu – Tu".
Santo Agostinho colocou essa questão de maneira muito precisa ao elogiar o fato de Abraão haver engravidado sua escrava Hagar a fim de ter um filho, posto que Sara, sua mulher, era estéril. Diz o Santo que Abraão agiu de maneira racional, por dever e não por prazer. Ele não gozou ao transar com Hagar. Estabelece-se um problema fisiológico: " É possivel ejacular sem prazer?"
O prazer, segundo a teologia de Santo Agostinho, é uma perturbação introduzida pelo pecado original. O prazer desviou o sexo da sua verdadeira função: passou a ser um fim em si mesmo – os amantes fazem amor por pura alegria, sem pensar em gerar um filho. O sexo, assim, pelo prazer, tornou-se escravo da carne e deixou de se subordinar aos imperativos da razão. O pênis passou a ter ideias próprias. Movimenta-se sem a ordem da razão. O pênis deveria ser como o dedo que faz o que a razão manda.
Amar é brincar. Não leva a nada. Não é para levar a nada. Quem brinca já chegou. Fazer amor com uma mulher ou um homem é brincar com o seu corpo. Cada amante é um brinquedo brincante. "Creio na ressurreição do corpo": não é a esperança de um milagre escatológico no fim dos tempo. É uma possibilidade de cada dia. Os sentidos precisam sair do túmulo onde os deveres os enterraram. Corpo de criança, corpo brincante: é nele que acontece a alegria!
O corpo é um lugar maravilhoso de delícias. Mas Xerazade sabia que todo amor construído sobre as delícias do corpo tem vida breve. A chama se apaga tão logo o corpo se tenha esvaziado o seu fogo. O seu triste destino é ser decapitado pela madrugada.
Nos livros de medicina os orgãos sexuais aparecem sob o título de "aparelho reprodutor". Essa ideia de sexo como aparelho, maquineta de fazer crianças, me é repulsiva. Só podem tê-la aqueles que não leram o " Cântico dos Cânticos ". Não existe naquele livro uma única sugestão de que sexo seja para procriar. Ali, sexo é só para a alegria do amor.
O bicho-de-pé ( tunga penetrans) merece sobreviver por suas múltiplas utilidades, entre elas, o seu uso didático, utilíssimo em aulas de educação sexual. A jovem, com medo da noite de núpcias, perguntou à mãe se doía muito. Ao que a mãe respondeu: "É feito bicho-de-pé. Dói um pouquinho, mas depois a gente não quer parar de esfregar…"
O amor nasce, vive e morre pelo poder – delicado – da imagem poética que o amante vê no rosto da amada. O amor prefere a luz das velas. Talvez porque seja isso tudo o que desejamos da pessoa amada: que ela seja uma luz suave que nos ajude a suportar o terror da noite.
Como são diferentes as mãos ternas das mãos que desejam a posse! A ternura não deseja nada. O beijo terno apenas encosta os lábios… O olhar terno deseja que aquele momento seja eterno. Daí o seu cuidado, a voz que fala baixo, a mão que tateia, o mover-se vagaroso: para que o encanto da imagem não se quebre…
"Ao pensar a possibilidade do casamento cada um deveria se fazer a seguinte pergunta: ‘Serei capaz de conversar com prazer com esta pessoa até a minha velhice?" (Nietzsche). Tudo o mais no casamento é transitório.
O segredo do amor é a androgenia: somos todos, homens e mulheres, masculinos e femininos ao mesmo tempo. É preciso saber ouvir. Deixar que o outro entre dentro da gente. Nada mais fatal contra o amor que a resposta rápida. Uma resposta rápida é um alfanje que decapita. Escutar demanda tempo. Há pessoas muito velhas cujos ouvidos ainda são virginais: nunca foram penetrados.
Releio as Confissões de Santo Agostinho. Faz a Deus a pergunta impossível: "Que é que eu amo quando amo o meu Deus?" Deseja entender o mistério do amor. Imaginem que um apaixonado fizesse essa pergunta à sua amada: "Que é que eu amo quando amo você?" Ela responderia perplexa: "Então, não é a mim que você ama? Você ama uma outra coisa através de mim?" Segredo que nenhum amante sabe: não amo a minha amada. Amo algo que aparece refletido no seu rosto. A raposa não amava os campos de trigo. Amava o Pequeno Príncipe que ela via quando o vento balançava o trigo. Não é o pé de rosmaninho que eu amo. É um rosto que vejo quando sinto o seu perfume. A pessoa amada é os campos de trigo, o pé de rosmaninho… "O que amamos é sempre um símbolo", disse Hermann Hesse. "Símbolo" é algo que está no lugar da outra coisa. O pão e o vinho eucarísticos marcam o lugar de uma ausência: Cristo não está lá. O símbolo, qualquer símbolo, sendo "uma outra coisa" que não a coisa amada, é sempre um lugar da ausência da coisa amada.
A pessoa amada é metáfora de uma outra coisa. Em ti amo uma outra coisa misteriosa, que não conheço, mas que me parece ver aflorar no teu rosto. Eu te amo porque no teu corpo um outro objeto se revela. Teu corpo é lagoa encantada… Quem está apaixonado não se dá conta de que o rosto da pessoa amada, presente, é apenas a superfície da lagoa onde se reflete o obscuro objeto do desejo (ausente). A pessoa amada é metáfora de uma outra coisa.
A pergunta que Agostinho dirige ao seu Deus é a mesma que pode ser feita à pessoa que amamos: pois a pessoa que amamos, no momento do amor, é o nosso deus… A experiência amorosa é divina! Quem está mergulhado no amor atingiu a bem-aventurança eterna – não precisa de mais nada. Te amo, sim, mas não é bem a ti que eu amo. Amo uma outra coisa misteriosa, que não conheço, mas que me parece ver aflorar no teu rosto. Eu te amo porque no teu corpo um outro objeto se revela. Teu corpo é lagoa encantada onde reflexos nadam como peixes fugidios…
Ângelus Silésius disse que o amor é como a rosa: " A rosa não tem ‘porquês’. Ela floresce porque floresce"..
O apaixonado sofre menos com a morte da pessoa amada que com a sua partida para um novo amor. A morte eterniza o amor. Ela o fixa, para sempre, a bela cena. A partida, ao contrário, a destrói.
Somos amantes muito antes de nos encontrarmos com a mulher ou o homem que será objeto do nosso amor. Somos como a criancinha que já ama o seio mesmo antes do primeiro encontro.
Somos donos dos nossos atos mas não somos donos dos nossos sentimentos. Somos culpados pelo que fazemos mas não somos culpados pelo que sentimos. Podemos prometer atos. Não podemos prometer sentimentos. "Eu sei que vou te amar, por toda a minha vida vou te amar…" Lindo e mentiroso. Não se pode prometer sentimentos. Eles não dependem da nossa vontade. Sua existência é efêmera. Como o voo dos pássaros…
Meditando sobre as telas de Monet você entenderá o amor. Tudo são reflexos efêmeros… Por um momento a beleza cintila, mas logo o tremor da água faz desaparecer o reflexo… O êxtase do amor é como os reflexos da luz sobre a superfície das águas da lagoa.
Todo símbolo é alegre-triste. Alegre, por lembrar a coisa amada, triste por ser o lugar onde ela não está… Hesse conclui não ser possível fixar o nosso amor em nenhuma pessoa. A fidelidade a uma única pessoa seria um equívoco…
Pobre Narciso, enfeitiçado pela beleza que via refletida na superfície da fonte… Sempre que tentava tocá-la com os dedos – a imagem desaparecia quando seus dedos encrespavam a superfície das águas. Será assim o êxtase da experiência amorosa? A bela imagem está lá, sorridente, no rosto da pessoa amada! Aí, vamos tocá-la – e ao tentar fazê-lo ela se desvanece…
Amor, imagem fugidia, escorregadia como um peixe… Tento pegá-lo com a mão. Ele foge. Esconde-se de mim. Zomba de mim. Desliza entre meus dedos quando eu já pensava tê-lo. Eu te abraço para abraçar o que me foge. Ao te possuir alegro-me na ilusão de possuir o que amo. Tu és o lugar onde me encontro com esta outra coisa que, por pura graça, apareceu refletida em ti, a bela imagem. Mas, por ser graça, da mesma forma como apareceu poderá partir. Se isto acontecer deixarei de te amar mas continuarei a amar a imagem que, um dia, vi refletida no teu rosto. E minha busca recomeçará de novo…
Rubem Alves em Quarto de Badulaques