terça-feira, 18 de novembro de 2014

O valor da oração




A oração foi inventada para aqueles que por si próprios nunca têm pensamentos, que ignoram o que seja elevação da alma ou a experimentam sem dela se darem conta: que farão eles em lugares santos e em todas as graves situações da vida, que requerem sossego e uma espécie de dignidade? Para que eles ao menos não ‘perturbem’, a sabedoria dos fundadores de religiões, das pequenas como das grandes, prescreveu-lhes a fórmula da oração, como um demorado trabalho mecânico dos lábios, associado a um esforço da memória e a uma mesma postura fixa para as mãos, os pés e olhos! Pouco importa se eles, como tibetanos, ruminam inumeráveis vezes “om mane hum”, ou, como em Benares, contam os dedos os muitos nomes do deus Ram-Ram-Ram (e assim por diante, graciosamente ou não); ou se exaltam Vishnu com seus mil nomes, ou Alá com seus noventa e nove; ou se utilizam moinhos de orações ou rosários – o principal é que com esse trabalho permanecem algum tempo imóveis e ofereçam uma visão tolerável: seu gênero de oração foi inventado para o benefício dos devotos que conhecem por si próprios elevações e pensamentos. E mesmo esse têm suas horas de cansaço, em que lhes faz bem uma série de palavras e sons veneráveis e piedosos gestos mecânicos. Mas, supondo que esse homens raros – em toda religião, o homem religioso é exceção – sempre saibam o que fazem: aqueles pobres de espírito nunca sabem, e pedir-lhes o matraquear das orações significa tirar-lhes a religião: como revela cada vez mais o protestantismo. Deles a religião quer apenas que ‘fiquem sossegados’, com os olhos, as mãos, as pernas e outros órgãos: assim tornam-se mais belos por algum tempo e – mais semelhantes a seres humanos!

Friedrich Nietzsche, in A Gaia Ciência