sábado, 2 de agosto de 2014
Pudor
100. Pudor
O pudor existe em toda a parte em que há um “mistério”; mas este é um conceito religioso, que, nos tempos mais antigos da civilização humana, tinha um vasto alcance. Por toda a parte, havia zonas delimitadas, às quais o direito divino proibia o acesso, exceto sob determinadas condições; antes de tudo, no sentido plenamente espacial, na medida em que certos lugares não podiam ser pisados pelo pé dos não-iniciados e, em cuja vizinhança, estes sentiam calafrios e temor. Este sentimento foi frequentemente transposto para outras situações, por exemplo, para as relações sexuais, que, enquanto prilégio e domínio impenetrável da idade mais madura, deviam ser subtraídas aos olhares da mocidade, para seu bem: relações, para cuja proteção e culto se supôs que muitos deuses estavam ativos e colocados como guardas no aposento conjugal. (Por isso, em turco, esse aposento se chama har-m, “santuário”; é, portanto, designado com a mesma palava que é usual para os átrios das mesquitas.) É assim que a realeza, enquanto centro donde irradia poder e esplendor, representa para o súdito um mistério cheio de sigilo epudor; muitas repercussões disso se podem, ainda hoje, sentir entre povos, que, aliás, de modo nenhum fazem parte dos mais tímidos. Da mesma maneira, todo o universo das realidades interiores, a chamada “alma” também é, ainda hoje, para todos os não-filósofos um mistério, depois de ter sido, durante tempo infinito, considerada como de origem divina, digna de relações divinas; ela é, por conseguinte, um espaço sagrado e suscita pudor.
Friedrich Nietzsche in Humano, demasiado humano