sábado, 9 de agosto de 2014

Ode Fragmentária. 1961 - Heróicas

Lady of silence
Calm and distressed
Torn and most whole
Rose of memory

T.S. Eliot



Se há muito o que inventar por estes lados
O que sei com certeza são meus fados
Exigindo verdades e punindo
Os líricos enganos da beleza.

À procura da rosa tenho andado
Causando às criaturas estranheza.
(Se me encontrares
Terei um jeito de flor
E um não sei quê de brisa
Nos meus ares.
Hei de buscar a rosa
- A dos altares -
E sinto graça nos pés
Leveza nos andares)

Não temes
As deidades atentas da memória
Os gnomos secretos, a loucura,
A morte?


Morremos sempre.
O que nos mata
São as coisas nascendo:
Hastes e raízes inventadas
E sem querer e por tudo se estendendo
Rondando a minha
Subindo vossa escada.
Presenças penetrando
Na sacada.

Invasões urdindo
Tramas lentas.

Insetos invisíveis
Nas muradas.

Eis o meu quarto agora:
Cinza e lava.
Eis-me nos quatro cantos
(Morte inglória)
Morrendo pelos olhos da memória.
Aproximam-se.
E libertos de presença da carne
Se entreolham.

O teu nascer constante
Traz castigo.
Os teus ressuscitares
Serão prantos.


Distorço-me na massa
De uma argila sem cor.
Mil vezes me refaço
E me recrio em dor.

E pouso lentamente
Sob a testa fria
Os girassóis da mente.

Antes as órbitas vazias!
Será eterno o júbilo de ter
Espátulas e nume
Nas mãos e no ser?

Bastasse o confessar-me a assim punir-me
De toda intemperança dos humanos.
Bastasse o que não sou e o refluir-me
Longínqua na maré desordenada. 


Sendo quem sou, em nada me pareço.
Desloco-me no mundo, ando a passos
E tenho gestos e olhos convenientes.
Sendo quem sou
Não seria melhor ser diferente
E ter olhos a mais, visíveis, úmidos
Ser um pouco de anjo e de duende?
Cansam-me estas coisas que vos digo.
As paisagens em ti se multiplicam
E o sonho nasce e tece ardis tamanhos.
Cansam-me as esperanças renovadas
E o verso no meu peito repetido.
Cansa-me ser assim quem sou agora:
Planície, monte, treva, transparência.
Cansa-me o amor porque é centelha
E exige posse e pranto, sal e adeus.

Queres o verso ainda? Assim seja.
Mas viverás tua vida nesses breus.


Um todo me angustia.

Se era de amor a ilha
E o mar à minha volta,
Não será menos certo
Que a sextilha de agora
Das formas que pensei
É a mais remota.
Temos jeitos de ser.
(Às vezes obscuros
Como convém ao ser)
Se em nada me detenho
Água de muitos rios
Passando por canais
De grande amor e mágoa,
Em tudo me detenho
Eu sei que sou raiz.

E se às vezes abrigo
Num caminhar rasteiro
As solidões alheias,
Às vezes vertical
Encontro aquele mundo
que é também o da terra
Feérico e abismal.

Tão grande ambivalência
Concedida aos homens
Terá sido dos deuses
Complacência?


Se falo
É por aqueles mortos
Que dia a dia
Em mim ressuscitam.
De medos e resguardos
É a alma que nos guia
A carne aflita.
E de espanto
É o que tecemos:
Teias de espanto
Ao redor
Da casa
Onde vivemos.
Trituramos cada dia
(Agonizantes amenos)
Constelações e poesia
E um certo jeito de amar
Que a nós,
De vôos e vertigens,
Não convém.
E quem sabe o que convém
A seres tão exauridos.
Concedemos
Alento, nudez, lirismo.
E contudo o que mais somos
São estes sonhos
Adentros indevassáveis
Bosques
Lilazes
Caminhos levando ao mar
Aves
Aves.


Ramas nas margens do rio que me pretendo.
E entre rio e regato, prodigiosa e leve
Levo no meu leito mais auroras.

Contente de mim mesma me inauguro sonora.

Se é preciso parar, colher raízes
Rememorar as sagas e ao lembrá-las
Imaginar um gesto, vado e vaga,
É preciso também
Um riso aberto e claro e cristalino.
E retomando o caminho da rosa
De órbita ilimitada mas fremosa
Me vejo em penitência, brasa e espinho.

Ah, deidades,
O vosso riso inflama
Ainda mais
O passo de quem ama.
De coração ardente
Eis-nos aqui.
Não haverá magia
Nem vertente
Nem segredo conluio
Nem labareda clara
ostentando uma rosa
Que não a preclara,
Que cegue o entendimento

Ou que vacile o andar.
Somos a um mesmo tempo
Rio e mar.
Na laringe e no peito
Renasce cada dia
Um estigma de luz
Um signo perfeito
E nada nos escurece a mente ou nos seduz.


Vós, humanos,
De gesto tanta vezes suplicante.
De coração ardente, dizeis?

A nós parece exangue
Esse pulsar contínuo
E tarefa insensata
Porque nós, divinos,
Temos no peito a força
o altar
A lança
E um todo movediço nos contém.
E se o arder renova
A sarça e a esperança,
um secreto poder
Consome a própria chama.
Vós, humanos,
De invólucro oscilante
E impermanente
Mortais e fustigados
Pretendeis o mais alto?
Amargados destinos.
Buscar a rosa
Cabe a nós, divinos.
Em nós a claridade
em nós tamanho amor
E sol e santidade...

E suas gargantas de aço
Inundaram de lava
Aquilo que era espaço


Era ali? Era adiante naquele muro
De claro verde musgo? Era distante?

Os mortos ressurgiram e cantaram:
Se a perfeição é a morte
Talvez por isso imortais
Há muito que existimos.
Mas se algum dentre vós
É de sopro divino,
Encantai-nos:
Árvore, pedra, ar, se vos apraz
Vida perpétua mas paciente e quieta.
Se o que vos guia e a fala de um poeta
Há muito entre nós. E procuraram
o todo uniforme: Hálito, sudário
E o mais além do homem.
Iguais a vós, a nós nos encontraram.
Eram velozes e límpidos. Asas
Nos pés humanos e por isso frágeis.

E apesar da eloquência que os mantinha
quando a noite chegava se crispavam
Como a mulher fecunda que é sozinha
E sabe do seu tempo incerto e pouco.

Como os humanos temem suas trevas!
Como temeis em vós a criatura!
E o mal sabeis que é sempre na clausura
que a vida se aproxima e recomeça.
Humildade e abandono. E que a palavra
Se tentar existir, seja singela.
E se for sábia, estranha  à vossa lavra
Orai àqueles que a fizeram bela.


Ai de nós, peregrinos,
Antes do amanhecer
Sonhando eternidades!
Não é nosso o destino
De amar e florescer.
Antes vertiginosos
Tateamos na sombra
A laje dos abismos.
E uma vez lacerados
Queremos a montanha.
Seu arco-íris. Seus lagos.

Amor e amenidade
São reservados aos filhos,
Aos amantes. A nós
Que verdes e que prados
E que planície extensa
Nos tranquiliza o olhar?

Se fôssemos aqueles
Feitos de areia, tantos,
Onde a água resvala
E volta e serpenteia
Mas deixa um só vestígio:
De umidade ou de pranto.

Ai de nós, mutilantes,
De afetos imprecisos,
De repente tomados
À lua das vazantes
Num relance possessos
Possuídos
Inflamando o sentir
Recomeçando aquele, o mesmo canto.

Estuários frequentes
Desviam nossas velas.
E de que lado, onde
Uma visão mais bela
Se o único prazer
é ter o mar, o vento
E naufrágios além
E descobertas
E permanências veladas
Muito ausência.
Em que montanha azul a nossa meta?


Se havia em nossa voz uma cadência,
Crescia em nosso peito uma brandura
Tão poderosa e viva e assim tão pura
Como se fosse a vida, a nossa vida,
Um caminhar tranquilo de inocência.
Um pouco do divino estava em nós.
Descobri-lo foi antes debruçar-se
Descer pausada sem tocar rochedos
Água de um mar imenso mas guardado
Sob um caudal de lírios e de medos.
Era do alto a força que nos vinha.
E à memória do tempo incorporou-se
Outra memória lúcida e candente.
Éramos nós ainda sibilantes
Soprando a cinza secular da mente?
Dou testemunho apenas da certeza
De uma visão suprema, luz e prata
De dimensão tão vasta e tão serena
Que o poeta apesar de ter vivido
Seus cânticos de amor
E de saber-se até predestinado
Porque sentiu temores, alegrias,
Guardou-se amante, iluminou-se crente
Cobriu-se de ternuras e de lendas

Não conheceu prazer ilimitado
Que suportasse o humano e suas penas.


Rosa consumada
Trajetória perfeita
Exatidão mais alta!

Pesa sobre nós
O limite da carne

O pensamento
Discursivo e lento.
Em nós
Corpóreos e pequenos
A fúria da vontade
E as mil abstrações

No amor e na verdade.

Nem sabemos por que
Construímos e amamos.

Mutáveis, imperfeitos
O mundo nos oprime

E nos comprime o peito.

Dúplices e atentos
Lançamos nossos barcos

No caminho dos ventos.

E nas coisas efêmeras
Nos detemos.

Hilda Hilst, Ode Fragmentária. 1961 - Heróicas
do livro Exercícios, Editora Globo, p. 133-148

Pinturas: Arkady Ostritsky