sábado, 2 de agosto de 2014

Aviso aos náufragos




Esta página, por exemplo, 
não nasceu para ser lida. 
Nasceu para ser pálida, 
um mero plágio da Ilíada, 
alguma coisa que cala, 
folha que volta pro galho, 
muito depois de caída. 

Nasceu para ser praia, 
quem sabe Andrômeda, Antártida, 
Himalaia, sílaba sentida, 
nasceu para ser última 
a que não nasceu ainda. 

Palavras trazidas de longe 
pelas águas do Nilo, 
um dia, esta página, papiro, 
vai ter que ser traduzida, 
para o símbolo, para o sânscrito, 
para todos os dialetos da Índia, 
vai ter que dizer bom-dia 
ao que só se diz ao pé do ouvido, 
vai ter que ser a brusca pedra 
onde alguém deixou cair o vidro. 
Mão é assim que é a vida? 


Paulo Leminski
In Distraído Venceremos, 1987