Largo Pesante
I
Uns ventos te guardaram. Outros guardam-me a mim. E aparentemente separados
Guardamo-nos os dois, enquanto os homens no tempo se devoram.
Será lícito guardamo-nos assim?
Pai, este é um tempo de espera. Ouço que é preciso esperar
Uns nítidos dragões de primavera, mas à minha porta eles viveram sempre,
Claros gigantes, líquida semente no meu pouco de terra.
Este é um tempo de silêncio. Tocam-te apenas. E no gesto
Te empobrecem de afeto. No gesto te consomem.
Tocaram-te nas tardes, assim como tocaste
Adolescente, a superfície parada de umas águas? Tens ainda nas mãos
A pequena raiz, A fibra delicada que a si se construía em solidão?
Pai, assim somos tocados sempre.
Este é um tempo de cegueira. Os homens não se vêem. Sob as vestes
Um suor invisível toma corpo e na morte nosso corpo de medo
É que floresce.
Mortos nos vemos. Mortos amamos. E de olhos fechados
Uns espaços de luz rompem a treva. Meu pai: este é um tempo de treva.
II
Ah essas dores! E o voltar contínuo ao silêncio das tardes!
Junto ao muro dos mortos o passeio se fazia longo. Estacávamos.
A tarde empobrecia de luz. O tempo galopava.
Vês? Tenho a alma pesada. Uma avidez no olhar
Antes ingênua, agora se fez grave. Há naquele campo a imutável paisagem:
As papoulas abertas, as ruas estreitas e uma grande e única alameda.
E datas, retratos. E súbito o ocre da terra sob os passos.
A mulher caminhava. Comprimia no peito a sua flor e de humildade
Era o olhar à procura do nome. Se tu visses depois que luminosa altivez
Se insinuava, quando voltava leve, sem o peso das dádivas.
E mitas passaram vagarosas. Umas lunares, com seus rostos aduncos.
Outras com a centelha escondida dos sacrários.
III
Não é teu este canto porque as palavras se abriram sobre a mesa.
Se chegavas era em silêncio e tocavas as coisas
Com a leveza dos meninos arrumando os altares. Uma rosa tardia
Mesmo assim desmanchava-se e tua presença na noite eu procurava.
Ninguém jamais nos via quando nos falávamos. As perguntas de sempre,
Os castiçais, o adro vazio da capela em frente. (E as persianas fechadas,
Para que o sal de fora não pousasse
Nas baixelas incríveis da memória). Aquele mar repetindo seu canto
Eas vozes partindo teus cristais! Como te abrigavas do ruído das estradas
E os teus livros abertos, como se desfizeram naquelas areias!
Nem sei de onde me vêm estes musgos, açoites, esta fonte que é nova
Em minha boca, nem sei dizer da morte o que te ouvi dizer no eco de umas noites.
Enquanto te celebro, as janelas do ocaso trazem risos.
E um hóspede atravessou incógnito teu jardim, afundou-se na névoa
Cansou -se do teu hálito nas arestas, nas muradas, nos cálices, em mim.
És presente como um vento que corre entre portas abertas.
IV
Na tua ausência, na casa o perfume das igrejas. O odor
Da castidade antiga dos incensos, reacendeu a alegria da infância
E aspirei contigo o perfume menos casto das cerejas. Na casa,
Um ruído de contas de rosário, mas eu só, meu pai, te vigiava.
Os ventos te seguiram. E próxima do teu passo, eu mesma era o silêncio.
A pedra. Impossível de abraço.
Uma torre contigo caminhava. Nos muros, nas escadas, refizeram ardis
Fibras trançadas, e aqueles pareciam mais largos, aquelas mais altas.
No teu andar, um quase nada definido. Tinhas o caminhar dos animais,
Espaçado e perdido. Respirei teu mundo movediço: Pai, não viste o sal da terra
Corroendo os pilares, as cruzes, a capela? E o sonho sobre a tua fonte
É mesmo uma crisálida pronta para ter asas?
Abriram-se os portões mas a casa era nova. A que foi nossa
Tuas filhas te disseram que na noite, um homem e sua torre,
Com paciências guardadas, pouco a pouco a demoliram.
V
Sobrevivi à morte sucessiva das coisas do teu quarto.
Vi pela primeira vez a inútil simetria dos tapetes e o azul diluído
Azul-branco das paredes. E uma fissura de um verde anoitecido
Na moldura de prata. E nela o meu retrato adolescente e gasto.
E as gavetas fechadas. Dentro delas aquele todo silencioso e raro
Como um barco de asas. Que fome de tocar-te nos papéis antigos!
Que amor se fez em mim, multiforme e calado!
Que faces infinitas eu amei para guardar teu rosto primitivo!
Desce da noite um torpor singular, água sob o casco de um velho veleiro
Calcinado. Em mim, o grande limbo de lamento, de dor, e o medo de esquecer-te
De soltar estas âncoras e depois florir sem ao menos guardar tua resonância.
Abraça-me. Um quase nada de luz pousou na tua mesa
E expandiu-se na cor, como um pequeno prisma.
VI
Há tanto a dizer-te agora! Meus olhos se gastaram
Procurando a palavra nas figuras, nos textos, nas estórias.
Era preciso viajar e levantada em renúncias redescobrir a morte
Além de seus sudários e tremuras. Quase nada aprendi. De nada me lembrei.
Há talvez a memória de tatos, um sentir rarefeito, um ouvido inexato
Deitado em solidão sobre o teu peito. E adeuses ingênuos, calados de vitória
E aquele de fereza, de acerto, dissolvido em orgulho, ressuscitado
Vagamente em canto. E na manhã, o meu sonho passara e a minha voz
Não se erguera em poesia.
Será preciso esquecer o contorno de umas formas que vi: naves, portais
E o grande crisântemo sobre a faixa restrita do canteiro.
Através do gradil, no terraço do tempo te percebo.
E ainda que as janelas se fechem, meu pai, é certo que amanhece.
Hilda Hilst
Odes maiores ao pai, editora globo, Livro – exercícios, editora globo, p.91-96
imagens: Arantza Sestayo