quarta-feira, 19 de março de 2014

Iniciação do poeta


A carnagem do sol em nossos pés.
Carlos Maria de Araújo



1.

O ouro do mais fundo está em ti.
Em mim, as coisas breves tomam corpo
E uma saga de bronze no meu ombro
A cada dia se transforma em chaga.
Um sol que se contrai sobre o meu rosto.
Aves de que não sei a sombra, vi-as
Na manhã quando o amor era chama
Mas num sopro perdi-as
E é grande agonia o que era gozo.
Guia-me complacência. Que o instante
Não se afaste de mim, antes padeça
Desse meu existir e eu não me perca.




2.

Claro objeto onde a rainha e o rei
Perduram indefinidamente num só cetro.
Vendo-o, como se fizésseis parte
Do seu único centro, vos vereis.
Nele a terra se mantém como foi feita:
Tenebrosa e tenra. Nele está o homem.
E se o olhardes bem, vosso cavalo
De cálida matéria. E no mais ínfimo
Do que vos rodeia, o que vos digo vereis.
Canto. E o meu canto se ouvirá
Onde o silêncio pesa, porque de maor se fez
Em amor conduz
E se nem sempre o que vos digo vos alegra
Não é só pena e angústia do poeta
Antes do ser, em mim, em vós,
Eternidade de dor e desassombro.




3.

Toma-me, terra generosa. Tu que foste centelha
E agora és terra, abre o teu peito e abrasa o meu
Antes de ti desfeito, ah, infinita de dor e de poder
Aceita-me. Unge-me pés e mãos. Unge-me o ventre
Que só tem sido noite e saciedade sempre
E o plexo ferido e a cintura de fogo sobre a mente
E o dorso e a laringe.
Unge-me porque em mim um outro se prepara.
E o mínimo de dádiva e a entrega antecipada que me fiz,
Ao outro se fará tão necessária cinza
Para a justeza e oporte da raiz. Unge-me a boca, a língua
para dizer a palavra esquecida e atingir o ser.
E faze dos meus olhos a medida para olhar através
e nunca perecer.




4.

Terra, de ti é que vêm essas portas de mim. E sendo de sol
A planície de pedra, de sol o vestíbulo da casa, de sol
O dorso que também foi meu, impaciente das aves, fecho-me
Porque em tudo te vejo como se fosses de água, e derramasses
Teu corpo escurecido na paisagem. Quis para teu canto
A mais viva palavra: um só templo:
Nítido sobre a colina, limpo na luminosidade da hora.

Meu rosto será aquele de todos os teus mortos. E no entanto
Te amei como se eu mesma fosse unicamente terrra, mãe, filha
irmã na memória, multíparas e claras, nascidas de uma só matiz
Sofrida de uma só matérias.



5.

Resíduo da retina, corpo crepuscular
Cone do passado e de recusa
Rosa-retina persistindo reclusa
Vejo-te agora, espaço, esplanada
Vejo-te como quem vem de fora
Mais livre de sua múltipla aparência.

Vede minha voz: a cada dia se faz clara.
Pastor e guardião
Pasce e resguarda a minha fla
E o que é palavra rompe
A lúcida matéria onde se esconde.




6.

Sem heroísmo nem queixa, ofereço-vos
Minha mão aberta. Agora vos pertence.
Queimada de uma luz tão viva
Como se ardesse viva sob o sol. Olhai se possível
a mão que se queimou de coisas limpas.
E se souberdes o que em vós é justiça
Podereis refazê-la como a vossa mão. E depois igualada
Aproveitá-la. A cada hora, a cada hora
E para o vosso pão.




7.

De luto esta manhã e as outras
As mais claras que hão de vir, aquelas
Onde vereis o vosso cão deitado e aquecido
De terra. De luto esta manhã
Por vós, por vossos filhos e não pelo meu canto
Nem por mim, que apesar de vós ainda canto.
Terra, deito minha boca sobre ti.
Não tenho mais irmãos.
A fúria do meu tempo separou-nos
E há entre nós uma extensão de pedra.
Orfeu apodrece
Luminoso de asas e de vermes
E ainda assim meus ouvidos recebem
A limpidez de um som, meus ouvidos,
Bigorna distendida e humana sob o sol.

Recordo a ingênua alegria de falar-vos.
E se falei submisssa e cantei a tarde
E o deixar-se ficar de alguns velhos cavalos,
Foi para trazer de volta aos vossos olhos
A castidade do olhar que a infância vos trazia

Mas só tem sido meu, esse olho do dia.




8.

Me afundarei nesse teu vão de terra
E a brasa da tua língua
Há de marcar em fogo o mais vivo da pedra.
Uma palavra nova há de nascer, mais clara
Palavra aérea, em ti se elaborando asa.
Em tudo nesta morte és inocente
Mas minha boca feriu-se de uns cantares
E agora, silenciosa, goiva de si mesma
Não sabe mais dizer sem se ferir e breve
Há de fechar-se
Porque tem sido em tudo amenidade
E não é este o tempo de florir. Sabias
Que um pouco da tua terra endurecida
Deitou-se sobre mim? E respirei minha morte
E acendi memórias em ti reconfluída
E convidei meus hóspedes antigos
Aqueles mais longínquos, rigidez e cal
Sobre um corpo de pranto agora ungido.




9.

E sempre será preciso o pão desta agonia:
De um lado, o passeio de uns dias ao redor do lago
O verde convalescente da memória,
Os pés numa terra aquecida,
E tu também convalescente, tateando o mosaico
Das paredes, dócil como se falasses a ti mesmo
Depois do grande exílio de uns afetos extremos.

E a ponte. E em cada lado, um rosto.
O primeiro voltado para o mais fundo do ser,
Gasto como se o tempo ao redor existisse palpável,
Alimento.
E o outro, exposto como um tronco
Numa extensãod e sal e de cimento,
Abre a sua boca para todos os ventos.




10.

Como se comprimisses a mão
Sobre os teus olhos
E visses tua carnadura
Simplesmente igual a uma grande massa escura,
Como quem vê de dentro
A princípio não vendo
E aos poucos distinguindo
O sangue, o filamento, o sal da sua própria estrutura

Assim posso me ver agora.

Parte de mim
Estilhaça uma asa num círculo de ferro.
Parte de mim é um arcabouço raro.
E o que vem de ti (uma parte de mim)
São aqueles meninos
E as aves com seus corpos finos
Sobre um lago de ledas asperezas.

Sou descanso e rudeza.




11.

Se viverdes em mim, vereis até onde me entendo.
Pássaro que entende em arco seu claro movimento
Um dia há de pousar e estender-se em raiz. Ares
De um tempo colaram-se nas asas e um só tempo
Pretendo. Abriu-se minha mão. E toda terra
De sua pequena superfície não se colou ao vento.




12.

Grande papoula iluminando de amarelo e ouro
Esta morte de mim. Meu canto está partido.
Minha morte não é a mesma que recobriu de pedra
Vosso ouvido, mas é como se fora, porque é morte
Cantar assim e nunca ser ouvido. Grande papoula
Iluminando de amarelo e ouro, porque é vida
Querer cantar, sabendo que a canção
Só tornará mais fundo vosso sono antiquíssimo.
Dormi, pois. Um menino passeia o seu cavalo e olha o rio
e ri dentro do capinzal: Trigo perdido em direção ao mar!
Ah, boca de uma fonte antiga rindo um riso de sangue.
Se pudésseis abri-la para cantar meu canto!




13.

Asa de ferro, esmaga esta última fonte
De pequenas águas, agora que a memória
Na morte fez-se leve. Aqui não há mais boca.
E o que era corpo tem seu voo circular
Sobre todas as coisas. Há lugares iguais
Àqueles que cantei, girassóis com suas hastes
De terra, mas tudo como se fosse visto
Vendo a um tempo só, a paisagem e o vidro.
Os cavalos escuros correm numa extensão
De claridade. E não há sede de águas
Nem vontade dolorida da palavra.
Estou no centro escuro de todas as coisas
Mas a visão é larga
Como um grito que se abrisse e abrangesse o mar


Hilda Hilst, do livro Exercícios, Editora Globo, p.101-113
Pinturas:  Katarzyna Kurkowska