quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Memória



Quando a memória transformada em ave 
Pousar sobre o meu peito a sua leveza

1.

E o tempo tomou forma. Assim me soube
Envolta em grande mar até a cintura
E nada a não ser água e seu rumor
Aos ouvidos chegava. E soube ainda
Que um só gesto e sopro acrescentava
Essa vastíssima matéria. E atenta
Em consideração a mim, cobri-me de recuos.
Eu, que de docilidade me fizera.

Antes avara desse tempo que resta.
Se em muitos me perdi, uma que sou
É argamassa e pedra. Guardo-te a ti.
Em consideração a mim. Redescoberta.



2


Há certos rios que é preciso rever.
Por isso volto, Ricardo, àquelas margens
Onde na sombra um verde descansava
E um canteiro de limo sob os nossos pés
Adiante desaguava. Volto, seguindo a viagem
De mim mesma e aos poucos convergindo
Oculta, vária
Até fechar um círculo e entender
Essa asa de fogo sobre as coisas.
Talvez neste canto eu te direi
Das estreitas passagens, do lodo
Convulsivo dos ancoradouros, dos funerais
Que vi, para chegar à luz da primeira paisagem.
Meus olhos deram volta à ilha.
Sigo pelos caminhos, transfiguro-me
Sei que um igual destino eu já cumpri
E ao mesmo tempo em tudo me descubro
Casta e incorpórea. Sou tantas,
Tantos vivem em mim e pródiga descerro-me
Pródiga me faço larva e asa.




3

Olhai o que mais vos convém.
Em tudo, o todo que sois feito
Se mantém. Pórticos, escadas
Ave sob um teto de chumbo,
O que estiver à tona, o mais fundo,
Ventre, ombro.

O caminho de dentro
é um grande espaço-tempo.
Olhai seu primeiro degrau, extenso
Terraço de mar e ainda terra.
Aqui, vosso corpo de amor se configura.




4

Mensageiro de ilhas,
Teus pés de pássaro, a mim é que procuram se caminhas.
Teu manto é largo e tranquilo. De asa teu sapato breve.
A mão direita é aberta sobre o peito leve e o teu passo
Àquele grande e pausado passo de ave se parece.
Ah, que dor de ter assim um todo na memória!
Que dor na fluidez do tempo e a mesma hora se fazendo sempre.



5

Áspero é o teu dia. E o meu também.
Inauguro ares e ilhas
Para que o teu corpo se conheça
Sobre mim, mas é áspera
Minha boca móvel de poesia,
Áspera minha noite

Porque nem sei se o canto há de chegar
No escuro labirinto em que te fazes,
Nessa rede de aço que te envolve,
Nesse fechar-se enorme onde te moves.

Trabalho tua terra cada dia
E não me vês. O teu passo de ferro
Esmaga o que na noite foi minha vida.
E recomeço. E recomeço.



6


Despe-te das palavras e te aquece.
Toma nas mãos esses odres de terra
E como quem passeia, leva-os ao mar.
Se tudo te foi dado em abundância
O sal e a água de uma maré cheia
Eu te darei também a temperança.

Deita-te depois e vibra tua garganta
Como se fosse o início de um cantar.
Não cantes todavia.
Aqui, zona de tato e calor, margem do ser
Larga periferia, olha teu corpo de carne
Tua medida de amor, o que amaste em verdade.
O que foi síncope.
Todavia não cantes na perplexidade.



7.

Vê, Ricardo, se falo tanto do ser feito de terra
É porque o resto é paisagem.
Olhei minha própria carne certa noite. E essa dor
Secular que a recobria. Tu passeavas teus olhos
Revivescendo a ilha, e meus braços castigados
Do gesto de alcançar, buscavam esse tempo de colher.
Mas eu não fui pastora. Há na terra que sou largas artérias
Mas um vento de assomos, um deslumbramento me tomava
E o gesto de plantar cristalizava-se no meu mais puro olhar.


Olhava: A figueira, a pedra umedecida da cisterna
O sol sobre o rosto das mulheres, um rosto semelhante
Àquele barro esquecido de rios. E ubíqua, viajava

Não que ali não deixasse afetos, pássaros da tarde
Cães (viajores de um dia) e presenças quando a noite
De augúrios começava. Uma parte de mim, essa de carne
E ausência, talvez não emigrasse. Os ritos, os de sempre.
Mas o olhar não era o mesmo: Pousava sobre as coisas
Mas nas coisas que via não estava.

Fui vista caminhando nos pastos. Nas vides. Muitos disseram
Que o meu corpo estendeu-se sobre a terra e de tal forma
Ficamos confundidas, que as aves descansaram de seu voo
Na minha fronte de pedra. Adormeci nas paragens de sal
Cantei minha canção no pátio dos mosteiros, atravessei as pontes
Lavei-me nas águas de infinitas nascentes. Mas a boca,
A minha boca fechou-se procurando uma única fonte.



8.

Ser terra
Ecantar livremente
O que é finitude
E o que perdura.
Unir numa só fonte
O que soube ser vale
Sendo altura.



9.

Lê Catulo para mim pausadamente.
Ressuscitei memórias na manhã de ventos
E abrasei-me de um sol de arvoredos.
Vi mulheres e aves e a mim mesma revi:
Ave-mulher, passeio adolescente
De umas manhãs iguais e mais amigas.
À tarde viajei nas artérias do tempo
E para não arder pensei palavras novas
E repeti meu verso mais ameno.
Foi tão longo o meu dia. Tão escura
A visão de mim mesma. Lê. Sereno.



10.

Sendo tu amor; irmão, comigo te pareces.
Em ti me dessedento e contigo me aplaco.
Esta larga vertente se parece à água
Do teu amor em mim onde um dia feneço
Porque também fenece a flor apaziguada
Essa que não nasceu para ter alimento
Antes para morrer do amor desmemoriada.
E se tudo me dás, num sopro anoiteço.
Eu sempre serei terra. E tomando a semente
Tomo pra mim uma tarefa inteira:
A de guardar um tempo, o todo que recebe
E livrá-lo depois de um jogo permanente.
Outros te guardarão. Não eu que só pretendo
Libertar na alegria o coração e a mente.



11.

(Andante tranquilo)

Ainda é cedo, Ricardo, para o tempo que dizes
Da velhice. Não que sejas menino. Não o és.
Mas na noite flutuas pela casa dissipado em meiguice
Que a mulher vê no homem o menino que é.
Sei do teu riso extremo insinuando
A ferocidade da tua meninice. E pensas porque te amo
Que esqueci a arena ensolarada de outros dias
O rio coalhado de anzóis, a matança das aves
No sol do meio-dia.
Vê, Ricardo, se me foi dado cantar tua brandura,
É porque aquele que tu foste um dia, sendo feroz
Amou. Talvez por isso é que eu te amo agora.




12.

(Poco piú animato)

Que te alegres de mim, Ricardo. Que a clareza do verso
Não te saiba à fatuidade e tola singeleza. Posso, para te celebrar,
Ser tecelã de um dia. E se o verso nasceu enquanto a mão tecia
É porque a cadência do tear trouxe de volta ao peito
Meu mundo amável de reminiscência.

Tive uma rua clara e a vontade gentil de descobrir o mar.
E se o ombro apenas começava um movimento rítmico de asa
Eu era navegante e navegava. Que te alegres de mim.
Entardeci possuída de infância.




13.


Estava entre as torres o homem. Eu e ele.
E no instante, partiu-se o rio escuro da memória
E um ruído de claras persianas
Invadiu-nos o peito e os ouvidos.
Eram ares perdidos retornando. Grandes pássaros,
Asas e rumo de obelisco. E de prumo era o voo.
Grande voo, cobrindo-nos o peito e os ouvidos.
Veio um silêncio feito de altas ramas
E as mãos se abriram em estupor antigo.

Era além do pudor o peito em chama.



Hilda Hilst
Livro: Exercícios, Editora Globo, São Paulo, 2002, p. 73-85
Pinturas: Ennio Montariello