sexta-feira, 25 de outubro de 2013

O advogado do diabo (trecho)


Aquele era o mistério da Igreja: manter numa unidade orgânica humanistas como Marotta, formalistas como Blaise Meredith e idiotas como o calabrês, reformadores, rebeldes e conformistas puritanos, papas políticos e freiras-enfermeiras, sacerdotes mundanos e anticlericais devotos. Exigia inflexível assentimento a uma doutrina definida e permitia extraordinária divergência de disciplina.
Impunha pobreza a seus religiosos; no entanto, através do Banco do Vaticano, agia nas bolsas de valores mundiais. Pregava o desapego pelos bens do mundo; no entanto, aumentava seus bens de raiz como qualquer companhia pública. Perdoava adúlteros e excomungava heréticos. Era áspera com os seus
próprios reformadores; no entanto, assinava concordatas com aqueles que queriam destrui-la. Era a mais difícil comunidade do mundo em cujo seio se pudesse viver; no entanto, todos os seus membros queriam nela morrer, e o papa, um cardeal ou uma lavadeira, recebiam com gratidão o viático das mãos do mais humilde sacerdote rural.
Era um mistério e um paradoxo — e Blaise Meredith estava longe de entendê-la, longe de aceitá-la como o havia feito pelo espaço de vinte anos. Eis aí o que o perturbava. Enquanto estivera bem de saúde, seu espírito se inclinava a aceitar a ideia de uma intervenção divina nos assuntos humanos. Agora, que a
vida sangrava dele lentamente, via a si próprio agarrando-se desesperadamente às mais simples manifestações de continuidade física: uma árvore, uma flor, as águas de um lago, tranqüilas sob o luar eterno.
Uma ligeira brisa estremeceu o vale, farfalhou as folhas crespas, fez com que as estrelas ondulassem na água. Meredith sentiu súbito arrepio e entrou, fechando a porta atrás de si. Ajoelhou-se no genuflexório, sob a figura de madeira do Cristo, e pôs-se a rezar: "Pater Noster qui es in Coelis..."
Mas o céu, se é que existia, estava fechado para ele, e não houve resposta do Deus sem rosto para o seu filho agonizante.


Morris West, O advogado do diabo